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A formação da mentalidade ocidental

Maurício Rands
Advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxford

Publicado em: 25/11/2019 03:00 Atualizado em: 05/12/2019 14:35

Em tempos de ansiedade, para muitos basta se atualizar através das mensagens instantâneas na telinha. No máximo na telona. Como outro dia lembrava o padre Fábio de Melo, atualmente lê-se muito pouco. Menos ainda, acrescento, lê-se sobre História. E ainda menos sobre a História das Ideias. Muitos não enxergam utilidade em saber um pouco mais sobre as ideias que moldam nossas atitudes. No entanto, pode não ser absurdo constatar que, até para nos conhecermos um pouco mais, importa saber como as ideias se desenvolveram e acabaram por formar as nossas concepções. Esse o mérito do monumental livro do historiador Thomas Holland, que acaba de ser lançado na Inglaterra. Dominion – The Making of the Wertern Mind – traz uma provocativa análise de como a mentalidade ocidental foi influenciada pelos valores do Cristianismo. O livro consegue mostrar como os valores básicos da religião cristã estiveram em tensão interna e externa. No interior de suas escrituras e de suas estruturas hierárquicas. Tensões que levaram o Cristianismo ao grande cisma da Reforma Protestante deflagrada por Martinho Lutero, com suas 95 teses afixadas em Wittemberg em1520. Mas os valores cristãos também moldaram as crenças e pressupostos até mesmo de movimentos que não se reconhecem como cristãos. A própria dualidade ‘Religião versus Secularismo’, segundo Holland, pode ser identificada na anterior reforma da Igreja Católica promovida por Gregório VII. Que, em 1076, estrategicamente impulsionara a separação entre Igreja e Estado e afirmara o primado do papado sobre os católicos.

Como me adverte meu filho Diego, História também é ficção. Por isso conta a técnica narrativa que, em Holland, é ao mesmo tempo erudita e deliciosa. Ele frequentemente inicia um capítulo descrevendo o que um personagem estaria fazendo e pensando na cena histórica que passa a contextualizar. Muitos dos eventos que já conhecíamos pela Bíblia ou através dos livros de história vão nos sendo revelados a partir de perspectivas que antes não havíamos imaginado.

A obra contextualiza a evolução das ideias desde o tempo dos pais fundadores do Cristianismo. São Paulo, São Irineu, os evangelhistas, Orígenes, São Tomás de Aquino, Santo Agostinho. Passa pelos contrastes entre os papas e seus legatários em momentos de degradação como o das guerras religiosas e a Inquisição deflagrada pelo papa Inocêncio III em 1215 e aprofundada pelo papa Gregório IX em 1231. Mas também realça momentos sublimes como os de São Francisco, São Martim ou Santa Elizabeth, em que os valores fundantes do do amor ao próximo e da paz também foram moldando a mentalidade ocidental. Como na origem do próprio conceito de direitos humanos, lançado pelos criadores do Direito Canônico nos anos 1200 em Bolonha. E que chegam até os movimentos pelos direitos civis e à contrarrevolução cultural tão bem exemplificada pelos Beatles. Que, argumenta Holland, estavam de algum modo dialogando com os valores cristãos quando pregavam o ‘faça amor não faça a guerra’ ou quando nos convocavam a imaginar um mundo de fraternidade e paz entre todos os povos.

Ele nos apresenta o Cristianismo como a mais influente estrutura de explicação do sentido da existência humana. E como impactou o mundo através de uma narrativa que conferiu um propósito a milhões de pessoas. Ao invocar Nietzsche, na distância de seu ateísmo, Holland lembra como os livre-pensadores não religiosos muitas vezes permanecem atados a valores e a tabus derivados do Cristianismo. Como ocorreu com o Marxismo-leninismo. Que, na análise do nosso autor, trocou os profetas cristãos por um profeta ‘científico’. A promessa do paraíso depois do Juízo Final pelo paraíso de uma sociedade sem classes depois da revolução. E que pregou o sacrifício na vida presente para gozar da recompensa num tempo futuro livre dos atuais padecimentos. Com a mesma lógica, movimentos seculares e laicos, como os feministas e os da emancipação gay também não deixam de sofrer a influência de postulados cristãos. O próprio humanismo laico que eleva a espécie humana ao centro de tudo, argumenta Hollland, não faria muito sentido sem a versão bíblica de que Deus criou a humanidade à sua imagem e semelhança. E que o filho de Deus morreu para o bem de todos, judeus ou gregos, escravos ou livres, homens ou mulheres.                                                         

Finalmente, Dominion avança o postulado de que a diminuição da religiosidade em sociedades ocidentais, sobretudo as europeias, não significa o recesso dos valores cristãos. Esses continuam profundamente incrustrados na mentalidade ocidental. Sem dúvida um livro que ajuda a compreender a evolução das ideias que nos moldaram. E nos desafia a revisitar nossas concepções e a entender mais claramente suas origens e DNA. Qualquer que seja a nossa tribo.

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