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Crianças cidadãs

Estevão Machado
Arquiteto-urbanista

Publicado em: 18/09/2019 03:00 Atualizado em: 18/09/2019 08:43

Lugar de criança é no “meio da rua”! É essa a aposta da Rede OCARA, iniciativa latino-americana que promove experiências urbanas com crianças em diversos países da América do Sul e Central. Estimular a vivência da rua construindo uma relação mais próxima com a cidade em trajetos comuns ao universo infantil como ir à escola, ir à creche etc... Essa vivência faz parte de uma construção cidadã saudável e que tende a afastar preconceitos e antagonismos sociais. É o que conclui essa Rede, que funciona desde 2013 no Brasil.

Caminhar e reconhecer novos rostos, novas raças, novas formas de se vestir e de falar, estimula nas crianças uma maneira mais direta de interação com a cidade e com as pessoas. É desafiador imaginar, como se daria uma interação assim, por exemplo, numa cidade como Recife. O paradigma da caminhada urbana como algo natural do dia a dia, e não eventual de uma “domingueira”, é o que traz de fato urbanidade e consciência cidadã para as pessoas. Levar essa consciência para as crianças recifenses, permitiria a elas um crescimento com um olhar comum a cidade, dentro da cidade, usando a cidade, e com mais empatia aos cidadãos e a um pertencimento partilhado no espaço público. Estamos criando gerações trancadas em condomínios e “consumidoras” de espaços particulares transformados em coletivos – desde que você possa pagar para acessá-los.

Há alguns exemplos de projetos, pelo Brasil, como o A pezito (RS), Carona a Pé (SP) e A pé para Escola (RJ) que demonstram como implementar essa cultura de pertencimento e empatia na cidade entre os cidadãos. A caminhada nos arredores da escola com outras crianças, valorizando o que existe de bom no entorno e destacando o que pode ser melhorado sempre valorizando o olhar e a percepção das crianças, é uma atividade prática que ocorre na maioria desses projetos. A segurança, obviamente, é considerada, e para tal as rotas contam com pontos de apoio que consistem em parcerias com espaços comerciais ao longo do percurso envolvendo comerciantes e pequenos empresários.

Eu gosto de pensar, não sei se passei a pensar assim depois de ser pai, que as crianças não são apenas o nosso futuro...elas são o nosso presente continuum. Nunca interrompidas, sempre presentes.

As crianças são do “nosso sempre”. Seu futuro se constrói continuamente, sobretudo no que diz respeito a sua capacidade de empatia e de socialização dentro da cidade. E há no Recife, na imensa maioria da sua população, quem utilize a cidade caminhando não por opção, mas por necessidade, por exclusão. Se colocar no lugar de crianças nesse contexto social é outra face desse processo de projetar caminhadas e interações delas com as cidades.

A estas em que os passos são calejados, não cabe aos pais decidir como levar e aonde. E justamente por isso são estas que mais usam os espaços públicos de verdade, reconhecendo as pessoas existentes neles. Incluir essas crianças em um processo de urbanismo cidadão em que elas não se sintam alijadas por não ter um carro, por exemplo, mas que se sintam valoradas e honradas em caminhar com dignidade nas ruas de onde nasceram – em bairros com desenhos urbanos de passeios públicos adequados, mobiliários e arborização adequados em seus percursos.

Muitos projetos públicos executados em bairros periféricos, quando ocorrem, são de natureza de infraestrutura (abastecimento d’água, esgotamento sanitário, contenção de barreiras...). Esquece-se consideravelmente de trabalhar uma proposta urbanística de autoestima por caminhar em seu próprio bairro. É preciso prover equipamentos públicos com excelente padrão de qualidade - comparados as melhores cidades com IDH altos – e gerir as escolas, para que as crianças, possam ocupar o seu bairro com diversas atividades nas ruas. A partir daí é possível - e exequível - pensar em um desafio de como fazê-las caminhar sem temer a vulnerabilidade existente na sua periferia.Periferia nesse caso não só excêntrica na geografia, por que ela ocorre também em áreas centrais da cidade – Coelhos, Pilar etc. Periferia no sentido de ser deixada ao lado das decisões, à parte do que se chama de “qualidade”.

No entanto, as crianças continuam andando. Continuam fiando e desafiando nas ruas aquilo que lhe der esperança em alcançar dias melhores, sonhos maiores. Em um projeto chamado “Muro dos Sonhos” na Vila Santa Inês, zona leste de São Paulo, crianças dessa comunidade eram instigadas a preencher lacunas da frase: “Quero que Sta. Inês tenha ...” E os pedidos eram os mais simples – flores, parques, brinquedos. Ou seja, para mudar as realidades mais íntimas dessas crianças, precisa-se compreender, mas principalmente ouvir seus sonhos e parir suas expectativas.

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