Diario de Pernambuco
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Se ele quiser saber mais, eu conto

Gildson Vieira
Professor de História

Publicado em: 08/08/2019 03:00 Atualizado em: 08/08/2019 10:17

Revisionismo histórico é algo normal. Quem pesquisa história sabe que faz parte do processo revisitar certos conceitos, documentos e fatos e, numa análise criteriosa, rever certos momentos ou interpretações de fatos acontecidos no passado à luz de um método de pesquisa científica. Esse passado ainda explica muito o nosso presente e, sem nenhum caráter “profecional”, conhecer os futuros possíveis.

Se não revisitássemos nosso passado, ainda tão presente nos nossos dias, não saberíamos que nosso país é saqueado desde o século XVI e que foi (ainda é) promovido um genocídio contra os nativos desta terra, assim como aos que foram sequestrados (e seus descendentes) de suas histórias e vidas para o trabalho escravo; não saberíamos que o Brasil sempre foi governado e conduzido pelo interesse de poderosos, expurgando ao ponto do possível qualquer participação popular livre nas decisões de Estado; saberíamos pouco que existe, desde tempos imemoráveis, um projeto de silenciamento e de esquecimento sistemático de todas as dores e traumas coletivos de nosso país, no rastro do genocídio indígena, passando pela escravidão negra, pela repressão às revoltas populares e chegando às práticas necropolíticas de torturas de Estado, sejam elas físicas ou não.

Se não revisitássemos nosso passado e não revíssemos certos momentos, talvez, ainda permitiríamos conscientemente que nossos erros nunca servissem de lição, permanecessem como práxis. Todo povo em período pleno de Estado Democrático de Direito revê seu passado, sem receios, com a intenção de superar as mazelas insustentáveis que o tempo não consegue sarar e de dar voz às injustiças e de demais situações conflituosas não solucionadas, deliberadamente esquecidas.

Em 1891, dois anos após o golpe da República, o então ministro das Finanças do Brasil, Ruy Barbosa (1849-1923), teve uma brilhante ideia: ao comemorar o terceiro ano da abolição, o Brasil autorizaria a incineração de toda e qualquer documentação referente ao período escravagista brasileiro, com o objetivo de “apagar” esse passado violento e tenebroso do país,  que vinha com a ambição de esquecer seus traumas e modernizar-se.

Involuntariamente, Barbosa ao autorizar este ato também apagava a história de milhões de ex-escravos e seus descendentes; seus nomes, os lugares de origem, os locais por onde seus parentes foram enviados quando separados à força e, não menos importante, quem dos seus ainda poderia estar vivo nestas terras. À época, a atitude de Barbosa foi demasiado elogiada. A imprensa tecia calorosos textos sobre o assunto.  Mas revisitando o momento e revendo o processo, vê-se que a ideia de Barbosa, bem intencionado, também impedia a responsabilização de qualquer busca de reparação judicial por parte de ex-escravos. Foi a alforria dos senhores de escravos.

O mesmo acontece com o tema da ditadura. Em 1979, entrava em vigor a lei da Anistia; o Estado brasileiro perdoava os cassados, os exilados, os presos, os torturados, os mortos e os desaparecidos. Na outra mão, perdoava também os torturadores e os assassinos do Estado. Impossibilitava de reagir judicialmente contra os causadores desses traumas. Foi a alforria do militares.

Quando não se tem reparação judicial, há que se correr atrás da reparação histórica. Daí o revisionismo. E não há problema nenhum com ele.

O problema mesmo é a negação da história. Negar fatos ou interpretações de um momento histórico, construídos(as) por pesquisadores em seu método científico e sem apresentar novos documentos ou novas abordagens cientificamente plausíveis,  parece ser o modus operandi de todo governo de aspiração autoritária. O negacionismo vem sendo tendência da retórica do senhor presidente da República Jair Bolsonaro (PSL) e dos seus. Ao negar a história, aponta-se muito mais que uma vontade, uma opinião ou interpretação de fato; nega-se o método de pesquisa, de averiguação, de maturação intelectual, de revisão de conceitos, de discussões que podem ou não abordar novas questões e de conclusões fortemente fundamentadas pelo senso científico mundial.

O comentário a respeito do desaparecimento de Fernando Santa Cruz é um claro exemplo, infelizmente, de como o presidente observa os fatos, os digere à sua vontade e externa-os sem maiores preocupações de preservação da dignidade de seu cargo e de ser humano. Ao negar a história de Fernando, documentada por especialistas renomados na Comissão Nacional da Verdade e reconhecida pelas Forças Armadas, o presidente não apenas o ofende, como atinge a ferida de toda a família Santa Cruz e procura censurar também sua única reparação possível: a histórica.

O presidente não pratica o bom revisionismo histórico: seu interesse, saudosista do pleito de 2018, está em estabelecer a lógica do confronto e alimentar falsas informações, negando a história a seu bel prazer. Neste caso, ao fazê-lo, a maior liderança institucional do país enaltece o assassinato de Estado, ataca a memória e a história, constrange o cargo que ocupa, expõe internacionalmente o país, agride a dignidade e o bom senso, fomenta conflitos internos. E se ele quiser saber mais, eu conto.

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