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A vida louca

José Luiz Delgado
Professor de Direito da UFPE

Publicado em: 07/08/2019 03:00 Atualizado em: 07/08/2019 06:41

Acho que foi numa antiga poesia de Austro-Costa que vi a expressão “vida louca”, e não mais a esqueci. Esta vida louca. A vida é louca. Não qualquer vida, a vida como tal, nem a existência, ou o mundo, o fato do mundo. Mas a vida do homem. A existência mesma não é louca. Mas a vida do homem é.

Porque ele tem, e só ele tem, a consciência de ser.

E, porque tem essa consciência, sabe que vai acabar, que vai desaparecer desta vida. Sabe que cada instante é apenas um fugaz intervalo, como no nado sincronizado, entre a figura que se forma e a que logo se desfaz. Por que o homem não aceita nunca a ideia de deixar a vida, se não tem alternativa e fatalmente irá deixá-la mais dia, menos dia? Por que não se conforma?

Tudo, no homem, vai passar. Tudo quanto conheceu, sentiu, amou. O que sofreu e o que o alegrou. A maneira como percebeu o mundo e se relacionou com ele – a felicidade que teve, as alegrias, as raivas, as dores, as perdas, os momentos de compreensão e ternura. Os semelhantes a quem confortou. O bem que praticou – ou nem o bem: sua simples presença, pela qual modificou o mundo, afetou os outros ao redor, alterou a criação. Como é possível que nada fique, disso tudo, dessas maravilhas todas? Se ele conheceu uma única coisa qualquer, o mar, uma flor, se só ele percebeu que “uma rosa é uma rosa é uma rosa”, como isso pode se perder para sempre? Ele se deslumbra com o bebê de poucos meses e admira a absoluta perfeição, que a imensa fragilidade da criancinha só faz revelar, e se assusta: para que tanta perfeição para, daqui a alguns anos, também  aquele rebento vir se atormentar com a mesma angústia, a consciência do abismo e do aniquilamento?

O homem, cada homem, sabe quem é, conhece a si mesmo, conhece as coisas, conhece o fato estranho da existência do mundo – e, nada obstante, tudo isso vai desaparecer com ele. Cada homem é um universo inteiro, à parte do universo físico; tem um universo dentro de si, porque conhece todo o universo exterior (ou pode conhecer, ou tem a ambição meio absurda de o conhecer). Cada homem tem uma história, o que nenhum outro ser tem. E, com a morte, tudo acaba – o universo interior que ele foi, a história que viveu. Como aquele universo interior imenso e a história que cada homem construiu pode ter um fim? O homem não se conforma. Procura ignorar a fatalidade para não se desesperar. A vida, portanto, é louca.

O homem sentiu a fragilidade da própria existência, viu o fio, o quase nada, que o prende à vida – essa vida que, apesar dos dissabores e dos contratempos, sente que é gostosa. Tremeu e temeu. Inquietou-se diante do abismo. Assustou-se com a possibilidade de o nada ser o desfecho de toda a maravilha que sabe ser. E, sem ter respostas, sem saber o que fazer, rezou. Mas, para que? Como pode o nada absoluto ser o termo de tamanha angústia?

A vida é louca. A existência não se explica.  Para que o esforço, a labuta, o penar? Para que também a felicidade, o júbilo, a festa dos sentidos e da contemplação? Para que o viver? Só pelo gosto de viver? Mas o que fica desse gosto? Se tudo desaparece, para que qualquer coisa? Que sentido tem o homem?

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