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Livros e sonhos

Ana Pontes
Professora da UFRPE. Doutora em Educação

Publicado em: 26/07/2019 03:00 Atualizado em: 26/07/2019 09:10

Lendo uma revista sobre Educação, vi experiência de um professor que decidiu rechear o carro de livros infantis, em vez de pôr moedas no console. Descrevendo a esperança de que estimulassem de algum modo crianças com um cotidiano repleto de horas cinzas, almejava que o interesse literário brotasse como teimosa erva daninha nas calçadas que apertam carros apressados.

Realizei o experimento. Pesquisas reforçaram a sugestão, como uma do Ibope em 2018 para o Instituto Pró-Livro: 42% dos adolescentes de 11 a 13 anos são os que mais leem por gosto, seguidos por crianças de 5 a 10 anos (40%). Isso não é aleatório: é a fase em que muitas crianças têm o primeiro acesso a livros em bibliotecas, levadas por professoras. Muitas não possuem livros infantis em casa, devido à prioridade do gás e do feijão diário.

A pesquisa demonstra fatores menos evidentes. Um é a importância do ofício de ensinar o sonho, a que professoras e professores se dedicam, a despeito de tanta desvalorização e de remuneração irrisória. Frequentemente é o educador que abre o mundo de uma criança para além do micromundo caseiro: mediando experiências, diariamente na convivência de dezenas de cabecinhas, e apresentando oportunidades como o gosto pela leitura.

Não por acaso, no limiar dos treze anos, transicionando para a adolescência, as idas coletivas à biblioteca, geralmente em grupo e com o educador, não apenas quase desaparecem, como enfrentam ausência de bibliotecas estruturadas, atraentes para que jovens façam o percurso sozinhos e nos horários de intervalo.

Apenas coletivamente podemos fazer diferença duradoura na educação brasileira, com a consciência do agir político cobrando, por exemplo, garantia de financiamento do FUNDEB. Nada nos impede, porém, de atuar na micropolítica, que pode, frente a tantas experiências ruins que crianças em vivência de rua experimentam, oferecer incentivo à ligação delas com a leitura. Por pouco que pareça, pode ser algo recolher livros e gibis usados entre conhecidos e passar a doá-los no lugar da moeda que limpa consciências e para-brisas.

Em pesquisa da Fundação Pró-Livro de 2011, dos adultos não leitores (não apreciam ou não leem adequadamente), 85% nunca haviam ganhado um livro. Leitores que haviam ganho responderam em eloquentes 88% que tê-lo recebido foi importante para despertar gosto pela leitura. Precisa de mais motivo para pôr uns gibis no carro?

Você se surpreenderá, vá por mim. Haverá surpresa, estranhamento. Em dezenas de ocasiões, por anos, não houve “obrigado”, mas isso é parte do alumbramento. Sua gratidão, se precisa dela, virá no relance do retrovisor, onde verá, como mágica, a beleza da curiosidade de uma criança ou mesmo adulto sentar na calçada, apagar por instantes o burburinho à volta e examinar aquele mundo particular de papel.

Não pare. Pense em semear um livro na vida de alguém. Doe livros que lhe ensinaram algo para rodas de leitura para encarceradas, promovidas por coletivos como o Liberta Elas. Espalhe apostilas preparatórias de seu sobrinho aprovado na universidade em projetos como o pré-ENEM gratuito Carolina de Jesus. Espalhe livros sobre identidade negra, força e coragem como prêmios para as batalhas de rimas promovidas pelo Coletivo Fala Alto. Esqueça livros onde quer que a mensagem deles seja importante. Você dificilmente saberá se a mensagem na garrafa chegou. Mas reduzirá, quem sabe, a ilha que limita o pensamento de alguém.

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