Diario de Pernambuco
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A estranha história de um galo gaulês

Luzilá G. Ferreira
Doutora em Letras pela Universidade de Paris VII e membro da Academia Pernambucana de Letras

Publicado em: 09/07/2019 03:00 Atualizado em: 09/07/2019 10:21

Tudo começou com uma notícia meio inesperada, pelo menos pra nós brasileiros, no sério Jornal da TV 5, da televisão francesa por assinatura, uma história de briga entre vizinhos, que terminou num processo de interesse nacional na França: um casal de idosos se queixava que o canto matinal de um galo das redondezas, impedia de dormir. Como está acontecendo com relação a qualquer estrangeiro incômodo naquele país que proclamou há mais de três séculos os direitos do homem e do cidadão, pediu-se a extradição e mesmo a pena de morte, para o bicho, que apenas exercia o direito de anunciar mais um dia de vida oferecido aos humanos. Até aí, tudo bem. Ou antes, tudo mal. Pois o galo é o símbolo daquele país, descendente de gauleses (de gallo, em latim), resistentes à ocupação estrangeira, no caso os romanos invasores. Nacionalistas da gema se pronunciaram, ambientalistas e ONGs de proteção aos animais aproveitaram o ensejo para denunciar maus tratos, devastação de florestas expulsando seus habitantes, uso como cobaias para produção de cosméticos, crueldade nos matadouros (que Brigitte Bardot denunciara há uns anos), matança de elefantes e de bebês focas. Aí a gente lembra como animais inspiraram poetas do mundo inteiro, o Albatroz de Baudelaire, o pássaro engaiolado retratado por Prévert, a águia de Victor Hugo, o pombo que La Fontaine imagina abandonando a companheira para ver o mundo e que volta depenado, ferido, dando ao poeta o ensejo de uma bela lição: “Amantes, vocês querem viajar? Que seja por perto, sejam um mundo um para o outro.” E entre nós o Condor de Castro Alves, os cisnes de Julio Salusse (símbolo de fidelidade matrimonial), as pombas que deixam o pombal à imagem de nossas ilusões de Raimundo Correia, as cigarras de Olegário Mariano que também recebeu um carneirinho de presente, querido como o Porquinho da Índia de Bandeira. A visão de um boi drummondiano julgando os homens. O boi de barro se esfacelando nas mãos de Mauro Mota, que também assinala a imaginação de Tereza olhando os animais do zoológico. O cavalo que descome dinheiro que Ariano descobriu no cordel. E a celebração da fidelidade dos cães no cinema, Elizabeth Taylor adolescente curtindo a volta de Laissie, em A Força do coração, filme que fez chorar meus dez anos de idade. E, recentemente, o cachorro que continuou por anos a aguardar o retorno de seu dono, sempre no final da tarde, e eu repito o que disse uma amiga: “ fidelidade a Richard Gere... até eu....” O folclore mundial imagina ratos curiosos caindo no cozido, no casamento com uma baratinha, um sapo que não lava os pés na lagoa. Um longo desfile de animais a desafiar a imaginação. Até a altíssima literatura se envolveu nesse interesse pelo bichos, penso na novela Flush, na qual a excelsa Virginia Woolf, constrói a “biografia” (sic) do cãozinho spaniel, pertencente à poetisa Elizabeth Barret Browning, que se tornou com o tempo, “como sua patroa, o que Lytton Strachey chama um Eminente Victoriano”. Uma pequena obra prima. O leitor deve estar se perguntando o final da história do galo abominado pelo casal de idosos gauleses. Eu não sei.

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