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VIVÊNCIA

"É a segunda parte da explosão social", diz sobrevivente da ditadura chilena

Por: AFP

Publicado em: 27/10/2020 10:26

 (Foto: Claudio Reyes/AFP)
Foto: Claudio Reyes/AFP
Os 23 dias de inferno na Villa Grimaldi, o centro de torturas da ditadura de Augusto Pinochet, marcaram para sempre a jornalista chilena Marcia Scantlebury Elizalde, 75 anos. Entre 3 de junho e 26 de junho de 1975, ela foi espancada e torturada com choques elétricos. Sobrevivente dos anos de chumbo no Chile, Marcia disse ao Correio que o resultado do plebiscito do último domingo — que sepultou a Constituição forjada por Pinochet — “é apenas a segunda parte da explosão social no país”. De forma esmagadora, 78,27% dos 7,5 milhões de votos registrados optaram pela mudança da Carta Magna, após a contagem de 99,85% das urnas.

“No ano passado, o povo saiu em massa às ruas para dizer um ‘basta’ à injustiça e aos abusos. Durante a transição e nos anos seguintes, o Chile teve uma macroeconomia invejável. No entanto, os frutos do desenvolvimento não chegaram aos cidadãos, e a distribuição de renda era miserável. A maior parte dos recursos se concentra em um pequeno grupo, e o resto da nação recebe salários de fome, e uma saúde e educação que, privatizadas pela ditadura, aprofundam as desigualdades”, explicou a sobrevivente.

Segundo Marcia, essa situação, aliada ao desprestígio das instituições, desatou a ira dos cidadãos. “A classe dirigente viu-se obrigada a abrir uma porta de saída para tirar a pressão de um quadro insustentável e ameaçador”, opinou. “Com uma Constituição elaborada por Pinochet — que sofreu algumas modificações —, estava claro para o povo que a mudança exigida não seria possível. A ex-presidente Michelle Bachelet tinha aventado elaborar nova Carta Magna, mas a iniciativa acabou boicotada pela direita. O presidente Sebastián Piñera não teve alternativa a não ser aceitar o plebiscito e enfrentá-lo com um setor dividido.”

Com a aprovação da redação de nova Constituição, o próximo passo será eleger os convencionais, como são chamados os integrantes da Convenção Constitucional — órgão encarregado de redigir o projeto da nova Constituição política do Chile —, em 11 de abril de 2021. Em agosto de 2022, será realizado um plebiscito ratificatório para aprovar ou rechaçar a proposta. A Convenção Constitucional sessionará em um período de 9 a 12 meses, entre junho de 2021 e maio de 2022.

Marcelo Mella, cientista político e professor do Departamento de Estudos Políticos da Universidad de Santiago de Chile, explicou ao Correio que o objetivo da nova Constituição é o de romper com o legado institucional da ditadura Pinochet. “Trata-se de um elemento que abre caminho para superar, por via democrática, a Constituição imposta pelo general Pinochet na década de 1980. Além disso, a democracia chilena deve resolver algumas dívidas pendentes com amplos setores da nossa cidadania, as quais têm a ver com a exclusão e com a desigualdade.”

De acordo com Mella, depois de três décadas de democracia, o Chile convive com desigualdades no âmbito territorial. “Em meu país, todos sabemos a diferença, em termos de expectativa de vida, na capital e no restante da nação. Há desigualdades de gênero, problemas de inclusão de povos indígenas no processo político e disparidades socioeconômicas muito importantes”, comentou.

Mella crê que a persistência da Constituição de Pinochet deu-se em função de um conjunto de incentivos favorecidos pelo sistema eleitoral nominal que vigorou no país entre 1990 e 2013. “Isso criou uma democracia com governos de alternância. Nesse intervalo, o sistema democrático funcionou sob a hegemonia de duas coalizões, o que reduziu a possibilidade de uma terceira via ou partido. O sistema eleitoral ajudou a criar incentivos para manter o status quo no campo institucional e nas políticas públicas”, disse.

O professor acrescentou que a elite política carece de liderança. “Ela não escutou dois sinais nítidos desde os anos 2000: a tendência de aumento da abstenção no processo eleitoral, em torno de 50%; e os protestos, que ganharam caráter intersetorial”, disse Mella. Para a viabilidade da nova Constituição, o especialista crê ser essencial que os partidos superem a tendência de fragmentação.
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