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Conflito

Rússia e Turquia farão patrulhas conjuntas no norte da Síria

Publicado em: 22/10/2019 20:37

Armas de artilharia do exército sírio disparando de uma posição em al-Habit, nas margens sul da província de Idlib  (Foto: SANA / AFP.)
Armas de artilharia do exército sírio disparando de uma posição em al-Habit, nas margens sul da província de Idlib (Foto: SANA / AFP.)
A Rússia e a Turquia acertaram o estabelecimento da zona de segurança pretendida por Ancara no nordeste da Síria e irão patrulhar uma faixa de 10 km junto à fronteira turca em conjunto.

É uma vitória maiúscula para o presidente Vladimir Putin, que negociou os termos do acordo com seu colega Recep Tayyip Erdogan, recebido pelo russo em sua casa de verão no balneário de Sochi, no mar Negro, no oitavo encontro entre ambos só neste ano.

Com isso, as forças curdas que ainda ocupam o bolsão na fronteira ganharam um ultimato para deixá-lo em 150 horas, pouco mais do que seis dias. Em 9 de outubro, após os EUA se retirarem dos postos de fronteira que mantinham na área, a Turquia iniciou uma operação militar para expulsar os curdos e criar a área, 30 km dentro da Síria.

Ancara confere aos curdos, que lideram as Forças Democráticas Sírias na região, o status de terroristas por serem associados aos separatistas do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão) –que atuam na fronteira sul turca. Até aqui, na guerra civil que erode a Síria desde 2011, os curdos eram protegidos pelos americanos no combate aos fundamentalistas do EI (Estado Islâmico) no país.

O presidente Donald Trump decidiu abandoná-los à sorte, alegando que não quer mais o envolvimento americano em guerras que não considera suas. A traição foi duramente condenada até por aliados de Trump, que veem no desengajamento prova da inconfiabilidade de Washington.

Já os curdos se voltaram ao ditador Bashar al-Assad, que só está na cadeira porque Putin interveio em seu favor na guerra em 2015, estabelecendo uma base aérea que deu apoio a tropas iranianas e sírias em solo, virando a maré do confronto.

Como a aliança sírios-curdos enfrentaria potencialmente tropas turcas liderando rebeldes sírios, havia o risco de a guerra se tornar entre Estados. Putin entrou em campo e, aparentemente, saiu com um acordo amplo no qual os turcos prometem não invadir mais áreas sírias.

"O banho de sangue vai acabar", comemorou, talvez precipitadamente dado o histórico sírio, o chanceler Serguêi Lavrov.

Sem muita opção, Assad aceitou o termos ao ser informado deles por Putin, após as mais de seis horas de conversa com Erdogan. O ditador disse concordar em "combater terroristas" com os dois outros países, disse a agência estatal de notícias. O que não está claro é o destino dos soldados rebeldes árabes que lutavam apoiados pela Turquia.

Para o líder turco, o estabelecimento do bolsão na fronteira é um marco de sua administração, sempre calcada no combate ao que chama de terrorismo curdo. Ainda é incógnita o que irá acontecer com as centenas de prisioneiros do EI que, segundo relatos, fugiram das cadeias curdas. Analistas temem um reagrupamento do temível grupo terrorista.

Antes do anúncio em Sochi, o comando das forças curdas no norte sírio informou a imprensa que tinha respeitado os cinco dias de um cessar-fogo algo cenográfico que os EUA patrocinaram entre elas e Ancara, que venceu na noite da terça.

Não há notícia do avanço histórico prometido por Trump, com a volta de refugiados sírios na Turquia. Agora, com Putin no controle e o novo prazo para que os 1.300 soldados curdos remanescentes na faixa nordeste saiam para o sul, há a possibilidade de que algum movimento ocorra.

O problema futuro é óbvio: muito dos 3,6 milhões de pessoas que fugiram para a Turquia o fizeram para escapar do regime sírio.

De todo modo, o acerto dessa terça pode ser um marco para o fim do conflito que já deixou mais de 350 mil pessoas mortas no país árabe. Novamente é Putin que entrega um instrumento para isso: o Comitê Constitucional Sírio, entidade aprovada pelas Nações Unidas que prevê escrever uma nova Carta e firmar eleições ouvindo vários dos atores que se massacraram ao longo da guerra.

O grupo deve se reunir neste mês. Para os curdos, cujo contingente de 2 a 3 milhões na Síria integra a maior nação apátrida do mundo, com 30 milhões de pessoas, a frustração poderá ser compensada com a manutenção de uma maior autonomia no nordeste do país, agora espremidos pelo corredor turco-russo de controle.

Pelo plano, as tropas de Moscou e de Ancara estarão em um terço da zona de segurança. Sua largura não está clara. Na ideia inicial turca, seria de 440 km, mas só houve operações militares do país num terreno com 120 km. Moscou tem menos de 5.000 soldados no país, e o ministro da Defesa, Serguêi Choigu, disse que o patrulhamento demandará mais equipamento.

Para os russos, que sempre evitaram tropas terrestres e confiaram no uso de força aérea e subcontratação de mercenários para evitar baixas e críticas domésticas, o perigo é evidente. Putin vive um momento de contestação interna, com perda relativa de popularidade.

Os números da ofensiva turca são nebulosos. Estimativas falam em 15 mil soldados, mais 15 mil rebeldes sírios, contra talvez 40 mil curdos. Morreram em torno de 500 soldados em ambos os lados, e pelo menos 300 mil pessoas fugiram de suas casas na fronteira, segundo agências de ajuda humanitária.

No triunfo de Putin está ausente, por ora, a terceira potência regional envolvida na guerra: o Irã dos aiatolás. Aliado de ocasião de Moscou, o país teve a presença de suas tropas reduzida após Israel pressionar a Rússia -o Estado judeu não tolera a ideia de inimigos declarados à sua porta.

Mas isso pode traduzir a extensão do novo poder do russo no Oriente Médio, como um mediador que conversa com quase todos os lados, do Irã à Arábia Saudita e Israel, além de estabelecer relações fortes no Egito e no Iraque. Esse papel, natural dos Estados Unidos nas últimas décadas, está sendo negligenciado desde a gestão Barack Obama e, com Trump, foi descaracterizado.

Para Putin, há ganhos de outra ordem. O Turquia é membro da Otan (aliança militar ocidental, liderada pelos EUA), e está cada dia mais próxima dos desígnios do arquirrival declarado do grupo, a Rússia. Após o encontro, Erdogan fez questão de dizer que aprofundaria a colaboração militar com Moscou -a compra de um sistema antiaéreo levou a represálias por parte dos EUA.

Se arrumar uma saída para o labirinto sírio, Putin poderá dedicar-se com cacife renovado a seu maior problema, a crise no leste da Ucrânia, em guerra civil congelada entre Kiev e rebeldes pró-Moscou desde 2014. Naquele ano, o russo anexou a península da Crimeia para evitar que um golpe que derrubou um governo amigo no país levasse a Ucrânia para as instituições ocidentais, Otan à frente.

Até aqui deu certo, e os ucranianos têm um novo presidente, Volodimir Zelenski, enfraquecido em sua primeira grande crise devido ao telefonema que recebeu de Trump, objeto central do pedido de impeachment do americano por sugerir manipulação de um líder estrangeiro para atacar Joe Biden, um de seus potenciais adversários na eleição de 2020.
 
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