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CINEMA

Crítica: 'Veneza' romantiza a fábula de um Brasil latino

Publicado em: 21/06/2021 09:21

A aura fantástica do longa acaba atrapalhando a profundidade de alguns dramas (Foto: Mariana Vianna/Divulgação)
A aura fantástica do longa acaba atrapalhando a profundidade de alguns dramas (Foto: Mariana Vianna/Divulgação)
Apesar da mesma localização continental, o Brasil não costuma compartilhar no imaginário popular a latinidade cultural dos nossos vizinhos. Por isso, é preciso abraçar os tons místicos de fábula para aceitar a realidade construída no filme Veneza, dirigido pelo ator e dramaturgo Miguel Falabella e que estreou na última quinta-feira (17) nas plataformas digitais.

Esse é o segundo longa de Falabella como diretor, mais de uma década depois de Polaroides Urbanas (2008). A história de Veneza vem da peça homônima do autor argentino Jorge Accame, com o qual Miguel teve contato direto para conversar sobre as adaptações necessárias, como já havia feito ao levar a peça para os palcos brasileiros nos anos 2000.

O comum a todas as versões é a trama principal, que acompanha as prostitutas de um bordel se rendendo à missão de realizar o último desejo de Gringa (Carmen Maura), a cafetina que as acolheu. A senil e cega dona do estabelecimento sonha em viajar até a cidade italiana de Veneza para reencontrar o amor de juventude, Giácomo (Magno Bandarz), antes que venha a falecer. Também integram o elenco Dira Paes, Eduardo Moscovis, Carol Castro e Danielle Winits.

Ainda que tenha apontado em entrevista a inspiração nos temas oníricos e circenses de Fellini, é inevitável perceber que outra forte, se não principal, referência do diretor veio dos filmes de Pedro Almodóvar. Tal percepção não é evidenciada somente pela presença da veterana Carmen Maura, uma das musas do diretor espanhol em filmes como Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988). O longa é marcado pelo clima inebriante de latinidade e tensão sexual, além de mirar seus olhos para figuras marginalizadas como prostitutas e pessoas trans, ainda que nem sempre com o cuidado necessário.

Além do material fonte, a construção de uma latinidade para a história atravessa outros fatores deliberados ou não. A convite do diretor, a cantora Ludmilla arriscou pela primeira vez o espanhol para a gravação da música tema Pecado, clássico do bolero. Já as locações, inicialmente planejadas para serem no Rio de Janeiro, tiveram que se deslocar por problemas na produção para a cidade de Montevidéu, capital do Uruguai.

A atriz espanhola veterana Carmen Maura trocou experiências com todos do elenco (Foto: Mariana Vianna/Divulgação)
A atriz espanhola veterana Carmen Maura trocou experiências com todos do elenco (Foto: Mariana Vianna/Divulgação)

Ao tratar de certos temas, contudo, falta o essencial tato e sensibilidade. Na clara tentativa de humanizar o mundo da prostituição, a história acaba por banalizar o sexo como moeda de troca. Por mais comum que seja, toda a problemática por trás de relações violentas, mesmo que consensuais, parece ser esvaziada ao termos personagens entediados ou montagens cômicas nos momentos mais degradantes. É um filme que quer empoderar, mas ao mesmo tempo renega muitas das suas figuras a caricaturas ingênuas.

Alguns personagens coadjuvantes não parecem ter muito a acrescentar na história a não ser trazer outras representações de sofrimentos possíveis. O núcleo de Madalena (Carol Castro) e Julio (Caio Manhente), por outro lado, consegue roubar a cena ao retratar um casal que transcende questões de gênero. Marcada também por suspense e violência, a história foi uma adição feita por Miguel Falabella ao material se inspirando em um casal formado por uma prostituta e uma mulher trans que ele conheceu.

Com uma resolução inventiva, o final até concretiza a emotividade poética proposta pela fábula. Contudo, ao embarcar tão profundo na busca dessa fantasia, o filme se torna cego para as violências sutis da realidade que se escondem por trás dessa atraente romantização de um Brasil latino.
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