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Nostalgia

Recife já teve cinemas drive-in, modelo cogitado na pandemia, há 40 anos

Publicado em: 16/05/2020 13:20 | Atualizado em: 17/05/2020 18:20

Autocine Drive-In, na Sede Social do Aeroclube de Pernambuco (Foto: Arquivo DP)
Autocine Drive-In, na Sede Social do Aeroclube de Pernambuco (Foto: Arquivo DP)


O cine drive-in, espécie de cinema ao ar livre onde se assiste filmes dentro de carros, faz parte de um certo imaginário retrô, bastante ligado aos Estados Unidos. Com a pandemia do novo coronavírus, o modelo tem sido cogitado em todo o mundo como opção de entretenimento, inclusive no Brasil. O festival Cine PE já externou o desejo de realizar sessões a céu aberto na edição de 2020, programada para ocorrer de 24 a 30 de agosto. No Brasil, o único estabelecimento do tipo que resistiu ao tempo foi o Cine Drive-In de Brasília, que funciona há 47 anos. Na década de 1970, no entanto, os autocines eram uma realidade no país. O Recife chegou a ter dois: o Autocine Drive-In, na Zona Sul, e o Autocine Joana Bezerra, no Centro. Ambos marcaram a memória de uma juventude recifense cosmopolita.

A consolidação do modelo drive-in ocorre entre as décadas de 1950 e 1960, quando os EUA contabilizavam mais de 4 mil estabelecimentos do tipo. Era o auge do american way of life, com boomers que ansiavam por consumo e diversão. Os autocines surgiram como uma opção mais econômica, tanto para o consumidor quanto para o empresário. Também, é claro, pelo seu apelo romântico - os casais contam com mais privacidade em seus veículos. No Recife, o fenômeno chega com certo atraso, em 1977.

O Autocine Drive-in foi o primeiro, montado em um terreno do antigo Aeroclube de Pernambuco, localizado na Bacia do Encanta Moça, no Pina. No acervo do Diario de Pernambuco, a primeira menção ao projeto foi feita pelo colunista social João Alberto, em nota de 16 de janeiro daquele ano. "Paulo de Melo Fontes, diretor do Aeroclube, me dá a notícia: ainda este mês estará funcionando o Autocine no Aeroclube. Haverá todas as noites duas sessões diárias, às 19h30 e 21h30, que poderão ser assistidas do próprio carro do espectador. Uma novidade que vai se constituir no maior sucesso em nossa cidade".

Autocine Drive-In, na Sede Social do Aeroclube de Pernambuco (Foto: Arquivo DP)
Autocine Drive-In, na Sede Social do Aeroclube de Pernambuco (Foto: Arquivo DP)


O empreendimento de Nivam Bezerra da Costa funcionou em sessões experimentais até o dia da inauguração oficial, em 12 de março, durante o aniversário de 37 anos do Aeroclube. A estrutura era composta por um equipamento importado da Phillips, com tela de 112 m², a maior do Nordeste na época. O som era sintonizado nos aparelhos de rádio dos carros. Nas suas dependências era possível estacionar 320 automóveis. Essas informações foram divulgadas pelo caderno Viver, em 23 de janeiro de 1977. A nota foi encerrada com humor: "O drive-in serve para quem quer ver o filme (a minoria) e para quem não está absolutamente interessado por ele (a maioria)".

Um dos primeiros filmes em cartaz foi a pornochanchada O marido virgem (1973), dirigido por Saul Lachtermarcher e protagonizado por Perry Salles e Sandra Barsotti. O Autocine entrou no roteiro de cinema do Viver em 1º de maio, com o longa Deu a louca no mundo (1963), de Spencer Tracy. 

UM CINEMA PARA A ZONA SUL
O Autocine Drive-In não foi celebrado apenas por seu ineditismo, mas também porque a Zona Sul do Recife era carente de cinemas. Essa realidade foi constante alvo de colunas e artigos de opinião em toda a década de 1970. De acordo com um texto da colunista social Thais Notare (1937 - 2019), de 1974, existia na Avenida Conselheiro Aguiar um cineminha típico do subúrbio, sem muito conforto, chamado Atlântico. Também havia o cineminha da Base Aérea, em Piedade, que ficava lotado sempre que exibia um bom filme. Assim, a classe média tinha que se deslocar até o Centro para prestigiar salas de qualidade.

O bairro de Boa Viagem da metade do século 20 era uma área de veraneio em intensa expansão urbana. Existiam constantes reclamações sobre abundância de muriçocas, falta de segurança noturna, de sinalização de trânsito, de casas bancárias e, como já dito, de cinemas. "Não se concebe que bairros pobres (ou paupérrimos) como, por exemplo, o Alto José do Pinho, tenha o seu cinema particular e um bairro da elite como Boa Viagem não disponha", dizia o texto Segurança noturna é drama em Boa Viagem, publicado no Diario em maio de 1970. "Qualquer companhia que queria montar um cinema em Boa Viagem teria que gastar, no mínimo, com muita boa vontade, cerca de um milhão de cruzeiros novos”, opinou o cineasta Fernando Spencer (1927 - 2014), que mantinha a coluna Imagem & Som

Entrada do Autocine Drive-In, no Aeroclube (Foto: Reprodução da Internet)
Entrada do Autocine Drive-In, no Aeroclube (Foto: Reprodução da Internet)


A aposentada Carmem Soares, 71, já morava em Boa Viagem quando o Autocine Drive-In estreou. "Era o top da época. Na inauguração, era como se fosse um novo São Luiz", relembra. "Eu fui muito com o meu marido, após largar do trabalho. Nós chegávamos de carro e existia um guichê, onde o ingresso era pago sem sair do veículo. Era preciso subir uma rampa para ter acesso ao estacionamento. Um funcionário nos indicava onde deveríamos estacionar, pois existiam marcações. Era uma área gigante, mas em qualquer lugar era possível ver bem a tela e ouvir bem o som".

Carmem também recorda da lanchonete. Para pedir um lanche, era necessário piscar o farol uma vez. Para pedir a conta, duas vezes. Um garçom vinha com o cardápio, que tinha hambúrguer e outras opções. "Eu lembro muito do bauru, que era um sanduíche com presunto, ovos e salada. Era muito pedido na época. Não lembro de ter pipoca". O bairro de Boa Viagem só viria ganhar um cinema na década de 1980, quando a Art Films inaugurou o Art Boa Viagem. Em 1988, o Grupo Severiano Ribeiro, em parceria com o Shopping Center Recife, brindou o público com mais salas.

AUTOCINE JOANA BEZERRA
Com o sucesso do empreendimento do Pina, logo um estabelecimento parecido foi inaugurado em outra área da cidade, em 1983. O Autocine Joana Bezerra funcionou na Área de Lazer de Joana Bezerra, onde atualmente está o Fórum Desembargador Rodolfo Aureliano. A área contava com parque de diversões, feirinha típica e área de esportes. O terreno foi cedido pela URB (Empresa de Urbanização do Recife) à empresa FQL Representações, tendo inauguração com presença do prefeito Jorge Cavalcante.

Anúncios dos longas-metragens Brubaker (1980) e Amor Sem Fim (1981) no Autocine Joana Bezerra, em 1983 (Foto: Arquivo DP)
Anúncios dos longas-metragens Brubaker (1980) e Amor Sem Fim (1981) no Autocine Joana Bezerra, em 1983 (Foto: Arquivo DP)


O estacionamento comportava 240 automóveis, a tela tinha 16 metros de comprimento e o áudio do filme era sintonizado na faixa de FM 88.1 MHZ. O ingresso custava 600 cruzeiros por pessoa. As sessões de segunda a sexta-feira eram às 18h30 e 21h30. Aos sábados e domingos, haviam filmes infantis às 18h30 e para adultos às 20h30. A sessão de estreia foi com O lago dourado, com Henry Fonda, que deu o Oscar de Melhor Atriz para Katharine Hepburn no ano anterior. A programação do primeiro mês contou com Bye Bye Brasil (1980), de Carlos Diegues, A vida íntima de um político (1979), de Jerry Schmatzberg.

O empresário Fernando Quintas Lopes, na época, se dizia preocupado em apresentar "filmes de boa qualidade". Com o passar do tempo, recebeu críticas ao exibir pornochanchadas, que tinham adesão popular. "Os autocines, para o seu necessário funcionamento, devem ter apresentações noturnas em horários em que os menores de idade não podem frequentar, a não se quando acompanhados por pais irresponsáveis", argumentou Fernando, em artigo assinado no Diario em junho de 1983.

Animação sendo exibida no Cine Drive-In. (Foto: Arquivo DP)
Animação sendo exibida no Cine Drive-In. (Foto: Arquivo DP)


O dono do Autocine Joana Bezerra também defendeu a existência do modelo como uma alternativa à crise. "O cinema vem mundialmente sofrendo a forte concorrência da televisão e mais recentemente dos aparelhos de videocassete, sendo aparente a queda nas casas exibidoras e, com isto, é inevitável a crescente tendência de sua substituição por autocines. Se faz necessário, para a sobrevivência dos autocines, que os mesmo sejam instalados em pontos estratégicos de fácil acesso para cada vez mais exigente espectador".

DECLÍNIO
Ao contrário do que Fernando Lopes pensava, os autocines não tiveram vida longa em Pernambuco. Ambos entraram em declínio no final da década de 1980. Não apenas porque deixaram de ser novidade, mas também por terem ganhado uma conotação de “lugar para namorar”. Nara Soares, 56, passou a frequentar o Autocine Drive-in em 1987. "Eu apenas descobri a existência dele quando fui. Era lotado de carros, mas a fila era organizada de uma forma que existia uma distância entre os veículos. Apesar de ser de noite, descampado, não existia perigo. Era bem escuro, só dava para ver a tela em frente. Mas muita gente nem via o filme, na verdade."

A própria Nara afirma que não lembra de nenhum dos longas-metragens que foram exibidos em suas idas. "Eu ia para namorar", admite. "Hoje em dia existe a facilidade do motel, mas antigamente não era assim. Para mim, pelo menos, era um tabu muito grande. Não sei se as outras pessoas pensavam da mesma forma. Hoje, com essa pandemia, o autocine seria uma opção muito boa e diferente. A sensação do ar livre é ótima".

APARENTE RETORNO
Depois que os Estados Unidos observaram que o modelo voltou a fazer sucesso nos últimos meses, iniciativas do tipo vêm surgindo no Brasil. O tradicional Cine Drive-in de Brasília, de 1973 e tombado como patrimônio cultural, tem visto um comparecimento impressionante. Se numa segunda-feira normal ela tinha de 30 a 40 carros no drive-in de 400 lugares, na última ela viu entrarem 150 veículos. Em São Paulo, a rede Cinesystem abriu neste mês um complexo de drive-in em Praia Grande, a 71 km da capital. A Cidade das Artes, na Zona Oeste do Rio, anunciou que vai abrir antes do fim do mês uma estrutura com capacidade para receber 150 carros.

Além do Cine PE, no entanto, até agora não existe nenhuma iniciativa para organizar esse tipo de exibição em Pernambuco. E mesmo que elas não venham a ocorrer, é possível afirmar que o autocine proporciona outra experiência de cinema, abrindo reflexões sobre a homogeneidade do multiplex. Basta viajar no tempo para descobrir que um outro cinema é possível.

Confira a reportagem em vídeo do Diario sobre os antigos cinemas de rua:

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