E se Moro e Lula estiverem errados?

Maurício Rands
Advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxford
twitter: @RandsMauricio

Publicado em: 17/06/2019 03:00 Atualizado em: 17/06/2019 10:01

O Brasil precisava mesmo de uma cruzada contra a corrupção. Por isso, a nação festejou a Lava-Jato. Pensou: tanto melhor se o combate vem travado por um juiz. Porque os juízes são imparciais. Ou deveriam ser. Aí entra a figura do juiz super-herói. Um produto sob medida para uma demanda reprimida. Ele encarna a vontade da nação. A princípio vai bem. Abre investigações contra poderosos que antes davam sempre um jeito de escapar. Todos os seus atos se justificam para cumprir o objetivo maior de combater a corrupção. E aí o juiz começa a acreditar. Sente-se um super-herói cuja missão é salvar Gotham City da maldade do Coringa. Batmoro contra Coringolusco.

Desconfia-se da pouca intimidade do ex-juiz com a língua instrumento de sua profissão. Consta que ele não sabe o sinônimo de consorte. No meio jurídico, comenta-se que a boa formação técnico-jurídica não é o seu forte. Mas ele não chega a desconhecer a estrutura elementar do sistema penal brasileiro. Ele sabe que o modelo é o acusatório, que ‘estabelece a instransponível separação de funções na persecução criminal’ (Raquel Dodge). Modelo em que o juiz conduz o processo para que as partes - o Ministério Pública e a Defesa - façam suas alegações e as provem. Nele, juiz não pode ter estratégia de investigação. O Brasil não adotou o modelo inquisitório, onde o juiz tem a função de investigar, conduzir a prova e, ao mesmo tempo, julgar. Neste, ‘a gestão da prova é confiada essencialmente ao magistrado’ (Miranda Coutinho). Como era o modelo de Napoleão ou o da Inquisição, em que o tribunal do Santo Ofício acusava o herege, instruía o processo e o condenava à fogueira. Por isso, a prevalência do aspecto inquisitório é associada a soluções totalitárias. O Brasil também não adotou o modelo misto do juiz de instrução, em que um magistrado cuida da investigação e outro do julgamento, como na França e na Itália.

Porque sabe que nosso modelo é o acusatório, Batmoro achou que, mediante um truque, poderia praticar o modelo dos seus sonhos, o inquisitório. Bastava manipular o titular da ação penal, o Ministério Público. Por isso, a intimidade com Robinlagnol. Ele indicava quem o MP deveria arrolar como testemunha, ainda que a partir de denúncia apócrifa. Escolhia quais depoimentos vazar à Rede Globo. Imprimia ‘timing’ político aos vazamentos. Reclamava do intervalo das operações midiáticas. Acolhia delações seletivamente. Mandava os procuradores fazerem nota à imprensa. Desqualificava pronunciamentos dos advogados da defesa do seu perseguido (‘já fizeram o seu showzinho’). Instruía Robinlagnol a aproveitar apenas 30% das delações. Não se tratava de mero conluio com a parte acusatória. Ele passou a ser o coordenador, na prática, da Força-Tarefa da LJ, embora ‘juiz não [possa] ser chefe de força-tarefa’, como lembrou o ministro Gilmar Mendes. Tudo parecia permitido ao inquisidor-libertador do Brasil. A independência funcional do MP (art.127, CF) virava mera formalidade que dificultaria mandar para as grades os poderosos. O art. 254 do CPP era ignorado (‘o juiz dar-se-á por suspeito... se tiver aconselhado qualquer das partes’). Tudo isso rendeu-lhe vantagens, o cargo de ministro da justiça e a promessa de vaga no STF.

A tragédia do pseudo-herói é que ele começou a acreditar no próprio enredo missionário. Pego em flagrante pelo Intercept, concentrou-se em acusar a ‘interceptação’ e o vazamento ‘ilícito’. Logo ele, um inquisidor que se especializara em vazamentos. Alguns ilícitos, como o da ex-presidente. Outros com ‘timing’ eleitoral, como o requentado de Palocci há uma semana das eleições. Não gostou de provar do próprio veneno. Reagiu com empáfia. ‘A missão não vai parar’. ‘Foi até um descuido meu’.
É acusado de querer o fim da LJ e de servir ao PT e aos demais corruptos quem suspeitar que o juiz-salvador tornou-se parcial. Quem não aceita juiz parcial e acima da lei que combina o julgamento com uma das partes e antecipa decisão judicial. Quem não aceita que o juiz mande o atacante cair na área para marcar o pênalti. Quem valoriza o princípio da separação entre estado-acusador e estado-julgador. Quem não acha que os fins justificam os meios.

Essa retórica da intransigência também é praticada do outro lado. Quem pensa que estão errados o ex-juiz e o ex-presidente é criticado pelos seguidores do segundo.  ‘Cúmplices de um golpe e de uma condenação de alguém cujo pecado foi ter olhado os pobres’. Como se o perseguido do Batmoro não tivesse liderado um governo que desviou bilhões. Como se as políticas sociais fossem álibi para a corrupção. Aliás, na atitude messiânica, o carrasco e a vítima têm algo em comum. Ambos se imaginam salvadores da pátria. O que também pensam os milhões de suas manadas. Que se atacam nas redes como se, nesse episódio, houvesse apenas dois lados. Que tal considerar a hipótese de que o Batmoro, com seu Robinlagnol, e o Coringolusco, com sua tribo, são ambos expressão da grande tragédia do subdesenvolvimento político de um país que até hoje não deu certo? É tão difícil admitir que ambos estão errados?

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