O curato de Bom Jardim

Marly Mota
Membro da Academia Pernambucana de Letras

Publicado em: 30/05/2019 03:00 Atualizado em: 30/05/2019 09:10

A velhice não me arrefece, me faz sempre recuar a outros tempos. Quando menina, com a prima Heloisa, da minha idade, no Colégio Santana, iniciamos nossas aulas do curso primário com as freiras alemãs da Ordem Beneditinas, muitas dessas jovens por vocação religiosa em plena segunda grande Guerra Mundial, fugiram da Alemanha, França, Bélgica para o Brasil. Perseguidas, pelo exército de Hitler o conhecido, “Fürer,” entre elas, a madre Maurícia, minha mestra de piano e de Heloisa, sob sua enérgica orientação, tocávamos a quatro mãos a Barcarola de Offenbach dos contos de Hoffmann, nas festinhas do colégio, onde toda cidade comparecia. Tempos depois soubemos que a madre Maurícia, nossa mestra de piano, voltara à Alemanha e morrera louca num hospício de Heidelberg. No Colégio Santana aprendemos de cor e salteado as tabuadas, as cartilhas entre outras lições.

Do século 17, nos chega o lugarejo, a humilde capela devotada a Sant’Ana, o velho Cúria com as obrigações eclesiásticas, instala-se numa modesta casa cercada de paus d´arcos amarelos, roxos, nativos do nosso agreste matuto em Pernambuco. Deixando o Curato, ficou chamado docemente de Bom Jardim. O meu pai foi o primeiro auditor fiscal do Tesouro Nacional, nomeado por concurso, em 1927 pelo Presidente da República Washington Luiz. Lá permanecendo, até a aposentadoria.

Em velho sobrado colonial com meus pais e irmãos moramos enquanto crianças e adolescentes. Eu filha única, irmanei-me à prima Heloisa, sempre presente em nossa casa, e nós na dos seus pais meus tios. O Barroco, na arquitetura dominando fora e dentro da bela matriz de Santana, do meu Pátio da Matriz. Com pesados sinos anunciadores das horas, das missas, das chamadas dos fiéis para as novenas do mês de maio, o Vigário de roquete, o sacristão intervindo nos conflitos paroquiais como as beatas correligionárias de uma Dona Francisca do Monte, do romance Pedra Bonita, do grande escritor José Lins do Rego, meu pai seu leitor, ambos meninos de engenho, nascidos em 1901. Conheci Zé Lins do Rêgo, no Rio de Janeiro final da década de 1950, com sua mulher Naná, a filha Cristina, de quem fiquei amiga, em jantar no apartamento de Álvaro Lins grande crítico literário, Chefe da Casa Civil do governo de Juscelino Kubitschek. Álvaro Lins, também da ABL, amigo fraternal de Mauro Mota, o indicou à cadeira de nº 26 da Academia Brasileira de Letras.

Em Bom Jardim o barbeiro Olímpio Guerra subia ao Pátio para “cortar cabelo, barba e bigode dos fregueses que não frequentavam a barbearia. Da calçada de dona Expedita, um gaiato grita debochado: “Pra fazer gosto a macho, só encontro o barbeiro, passa o pente, alisa a cara, ainda lhe bota cheiro”. Olímpio, usava em nós meninas e senhoras, sempre o mesmo corte: “demi- Garçonne,” que eu detestava. Heloisa não cortava suas tranças.

Neste mês Mariano, uma das noites foi patrocinada com muito zelo e devoção pelos meus avós do Engenho Independência. Os encarregados da noite seguinte, pessoas humildes, pediram para eles deixarem os enfeites. Solicitação gentilmente concedida. Um dos filhos. não concordando, sorrateiramente retirou todos os enfeites. Quando vovó soube do incidente, ficou em coma profundo, por três dias. Numa madrugada fomos surpreendidos, com alegria. Vovó acordara, queria a família ao redor da sua cama, falando com todos perguntando pelos ausentes, como uma despedida, morreria logo depois no dia, 29 de maio, de 1936. Muito gorda, como as senhoras de engenho da época, no seu tempo, velha aos 56 anos. Até então, nos meus 10 anos guardei o canto suave da sua voz, no aconchego do seu colo ao balanço da velha cadeira de jacarandá, que me foi dada tempos depois. Nela balancei a minha filha cujo nome lhe foi dada pelo pai, Mauro Mota. Teresa Alexandrina Maura da Motta e Albuquerque, em homenagem à avó e bisavó de ambos.

Daqui expresso minha tristeza pelo falecimento da amiga e companheira Maria Thereza Neto, ex- presidente da Academia de artes e Letras de Pernambuco.

Ao poeta Moisés da Paixão, em agradecimento ao seu belo livro O Gênesis em poesia; também como eficaz presidente da Academia de Artes e Letras de Pernambuco.

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