Aposentadoria? Pois sim

Luzilá Gonçalves Ferreira
Doutora em Letras pela Universidade de Paris VII e membro da Academia Pernambucana de Letras

Publicado em: 21/05/2019 03:00 Atualizado em:

Em vista dos últimos acontecimentos (nem sei se a citação de Drummond está correta), uma amiga resolvera se antecipar a esses mesmos acontecimentos e deu entrada na papelada para a aposentadoria, a que tinha direito. Se bem pensou, melhor o fez, diria o outro. Como havia trabalhado em vários lugares (e colégios), foi uma trabalheira, atestados, firmas reconhecidas, e enfrentou a etapa final, a fila na repartição da Avenida Norte, à qual chegou antes mesmo da abertura, por volta das 6h30. De posse da ficha de atendimento, - um número impossível, incompreensível, algo com setecentos e pico,- entrou na sala de espera, um salão até confortável, com ar condicionado e tudo. Consultou o jornal do dia, para verificar as misérias tidas e havidas, aqui e em outras partes do planeta uma enxurrada de coisa ruim, aumento no preço da gasolina, das passagens do metrô, um feminicídio (até quando, meu senhor?). Mais um atentado à bomba em lugar distante, uma grande fotografia colorida mostrando cena marítima, em país da Europa (felizmente não é aqui, pensou) onde o lixo escondia a água. Havia, é verdade, outro tipo de notícias, uma multidão protestando contra o descaso mundial para o aquecimento global, inda bem que existe gente assim, um mundo de Médicos Sem Fronteiras abraçando crianças salvas de doenças e da fome (preciso colaborar com esses abençoados MSF que a televisão anuncia). Por volta das 13 horas comeu o sanduíche que havia trazido, não ousava se ausentar com medo de ser chamada, os números indicados a atendimento não obedeciam a uma ordem qualquer. Abriu o livro que trouxera para ajudar a passar o tempo, um desses romances modernos nos quais não há ponto nem vírgula, e os personagens possuem nomes estranhos que o leitor não consegue gravar pra saber quem é quem. Como esta história está ficando penosa, vou concluir dizendo que antes de encerrar o expediente, minha amiga foi chamada. O funcionário atrás do guichê, deu nos papéis, e de repente, não mais que de repente, carimbou o todo ou em parte, entregou a carteira de trabalho, um documento comprobatório. E em menos de cinco minutos, resolveu-se o assunto, o homem se levantou, bocejou, minha amiga saiu enquanto apagaram as luzes do recinto. Pensou no escritório onde não mais trabalharia, nos alunos que não mais encontraria. Em lugar da alegria aguardada, veio a pergunta na bela voz de Caetano Veloso: “Agora que vou fazer de minha vida sem você? Você só me ensinou a te querer”. Mas ao chegar em casa, tomou um banho, deitou-se na rede e foi reler um romance com começo meio e fim, um romance daquelas inglesas velhas, queridas por Rachel de Queiroz, e Jane Eyre encontrava finalmente o antigo amor e a heroína de Orgulho e Preconceito desposava o senhor Darcy. Teria ainda muitos anos de vida pela frente, como aproveitar esse recomeço, agora que quase fora salva pelo gongo?

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