Hoje não darei aula

Márcia Mª G. Alcoforado de Moraes
Professora Associada - Departamento de Economia/ PIMES/ PPGEC/ UFPE.

Publicado em: 15/05/2019 03:00 Atualizado em:

Falei um dia desses por aqui sobre as heroínas e heróis da psicologia analítica. Aqueles que se atrevem a fazer a jornada em busca do seu eu interior. Há anos venho seguindo nessa direção e já penso em escrever sobre isso. Talvez ajude outras pessoas. Nessa busca, muita coisa foi se descortinando e aspectos meus, desconhecidos de mim mesma, foram se tornando nítidos. O ser professora, no entanto, talvez tenha sido a minha característica menos velada. Vinda de uma família recheada deles, além de ser “permitido” a mulheres, mesmo em gerações anteriores a minha, era até estimulado em casa. Jamais esquecerei de um miniquadro-negro que ganhei na infância e uma caixa inteira de giz branco. Acho que foi a minha primeira certeza: queria ensinar. Nada do que eu fizesse me preenchia tanto quanto preparar uma aula. Para isso descobri cedo, era necessário estudar muito, ter senso crítico, consultar várias referências bibliográficas e o mais instigante: criar, inovar e motivar. Era mister, também, ter que vencer a timidez. Mas lá, enquanto ensinava, com a minha aula preparada, tudo era diferente. Havia empatia e resposta dos alunos e uma relação de confiança facilmente se estabelecia. Hoje, acho que seguir essa vocação e ensinar, foi o ponto de partida e o combustível para enfrentar todos os obstáculos que a mim se interpuseram. Foi, com certeza durante as minhas aulas, no espelho do olhar dos jovens, no início quase tão jovens quanto eu, que construí minha autoestima e obtive a confiança necessária para desenvolver minha carreira e quiçá, minha identidade. Essa semana no mural de nosso Centro, me deparei com um cartaz: “Se vc não tem boas condições financeiras, estudar é o seu maior ato de rebeldia”. Não era o meu caso, não tínhamos propriamente dificuldades financeiras, mesmo sem nunca termos sido ricos. Mas sendo única, numa família de valores marcadamente masculinos, o meu estudo, hoje entendo, foi também um ato de rebeldia. O meu feminismo ainda soterrado, empurrou-me para ocupar espaços nas áreas quantitativas e a minha formação nelas, ampliou-se em níveis não planejados. Foram acontecendo. Estudei-as tanto, que acabei por tornar-me professora de ensino superior em programas então predominantemente masculinos. Ser professora de uma das instituições de ensino e pesquisa de maior prestígio no Nordeste não foi propriamente um sonho “sonhado”. Foi uma guinada na minha trajetória de engenheira e consequência de uma paixão arrebatadora pela pesquisa científica. Esta, apresentada a mim em um mestrado e doutorado obtidos já com a vida em movimento ( estava empregada, era casada e tinha 2 filhos pequenos), me fez ver que o necessário para ensinar, tinha que ser ainda mais aperfeiçoado. Só assim viriam publicações, citações e o mais desejado da produção científica: aplicabilidade dos resultados em benefício da sociedade. Há problemas nas nossas universidades públicas, não nego. São inúmeros. A estrutura de incentivos, muitas vezes inadequada a nós mesmos, a burocracia e a compartimentalização do conhecimento ainda sabotam propostas e projetos inovadores, especialmente os interdisciplinares. Deve-se ressaltar, no entanto, que muito se evoluiu nos últimos 20 anos. As agências de fomento, inovação e avaliação voltadas a aportar os recursos em ensino e pesquisa amadureceram, e com melhores indicadores, vêm contribuindo para a melhoria dos cursos e programas. Há estímulos cada vez maiores para a internacionalização, o que pode mudar a “cara” da Universidade brasileira e nos fazer avançar muito em pouco tempo. Somos responsáveis pela quase totalidade da produção científica do país e o ensino público superior, antes elitizado, já atinge, em maior número, jovens menos abastados, além de ter sido interiorizado. Precisamos melhorar o ensino básico, é verdade, mas isso também passa pelas universidades, pois que formamos os seus professores. Neste momento, precisamos de uma posição inegociável da sociedade em defesa do patrimônio construído por várias gerações. Temos bases lançadas e a solução definitivamente não passa pela desconstrução desses alicerces. Sem critérios e com cortes irresponsáveis ameaçando o funcionamento dessas instituições destroem-se identidades, futuros e o próprio sentido de nação. Hoje, quarta, é dia de aula na pós-graduação. Na minha disciplina tenho o prazer de ver inscritos mestrandos e doutorandos de várias áreas. Ainda uso os seus olhos como espelho, mas hoje vejo neles mais, mais do que a mim mesma. Vejo límpidos objetivos e muita vontade de corrigir distorções e fazer diferença na vida das pessoas. Hoje não darei aula. Hoje, a aula, talvez muito mais deles, será na rua. 

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