Milagres de Notre-Dame

Luzilá Gonçalves Ferreira
Doutora em Letras pela Universidade de Paris VII e membro da Academia Pernambucana de Letras

Publicado em: 23/04/2019 03:00 Atualizado em: 23/04/2019 09:31

Meu sobrinho Jorge telefonou: “Tia está ligada na televisão?” Falou do desastre. Imediatamente chamei Paris. Meu amigo Didier Lamaison não estava, evidentemente. No cais do Sena, ao lado da multidão, desesperado, arrasado, bestificado, segundo suas palavras, este nosso ex-colega na Ufpe, contemplava a altura das chamas elevando-se na parte posterior da catedral de Nossa Senhora de Paris. Séculos de trabalho de pedreiros, marceneiros, escultores, pintores, músicos, organistas, pareciam condenados a desaparecer sob o fogo. E séculos de literatura, de poesia, de história, coroação de reis, missas de sagração, velório de pelo menos dois presidentes sagração de Napoleão I, consagrando a si próprio e a sua esposa, Josefina, como Imperador e Imperatriz, em presença do próprio papa, que certamente não acreditava no que viam seus olhos. Notre-Dame,  segunda catedral mais visitada do mundo, logo após a do México, se desfazia, e parecia tão pequena, indefesa, e o povo de Paris chorava. Ninguém, mesmo o incréu mais empedernido, que tenha assistido ao concerto dos órgãos de Notre-Dame (três andares de teclado) nos finais de tarde de domingo, pode afirmar que não sentiu o poder dos sons penetrando coração e alma. Nem se comover ao toque dos sinos, que anunciaram catástrofes, mortes, ao longo dos séculos, mas também festas, como a libertação de Paris com a derrota dos nazistas na Segunda Guerra Mundial, a catedral tendo sido poupada por desobediência do chefe da Gestapo, que recusara incendiar a cidade (vejam o filme Paris, brûle-t-il?). Notre Dame escapara do bombardeio que destruíra  Saint Gervais, a alguns quilômetros dali, e as catedrais de Amiens e Reims, esta última marcada pela lembrança de Joana D’Arc. Um milagre, como esse que poupou os grandes órgãos da catedral, intactos. Mas um outro milagre aconteceu, menos importante claro, presenciado por esta que vos escreve: semana de Natal, nós todos, estudantes na maioria, sentados no chão diante da catedral, sob terrível frio de inverno, aguardávamos a presença de Joan Baez, uma voz sensível e lutadora em prol da beleza da vida e contra as injustiças do mundo. De repente o sol aparece, a temperatura se eleva, chega a 23 graus, juro, e a grande cantora saúda o milagre, canta um antigo cântico tradicional de Natal, Rejoice, rejoice, e Gracias a la vida, de Violeta Parra. Haja coração. Notre-Dame. Uma outra grande cantora celebrou as catedrais da Idade Média, e nelas a lembrança sempre presente dos que a edificaram, mesmo sabendo que não veriam nunca terminada a obra: Anne Sylvestre, cantando Les Cathédrales, (consultem o Google), celebra os humildes poetas e jograis meio loucos, que alegravam com seus cantos a penosa lida dos operários fabricando vitrais com pedaços de nuvens e de estrelas, e cujo canto a gente ouve ainda hoje. Nas criptas, sob as lajes nas quais repousam os antepassados, a gente pode escutar esse canto, que também podemos imitar, criando beleza, se não esperarmos demasiado, canta Anne Sylvestre. Didier Lamaison voltou a Notre-Dame, viu a fachada intacta, limpa,  quando a tarefa dos bombeiros foi encerrada. Um trabalho que não se pode imaginar disse, e concluiu: “Eles usaram a água de nossas lágrimas para extinguir as chamas.”

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