Editorial Cultura da desconfiança

Publicado em: 19/04/2019 03:00 Atualizado em: 21/04/2019 05:07

O incêndio na Catedral de Notre-Dame, em Paris, na última segunda-feira, deixou muito mais que prejuízo, tristeza e cinzas. A tragédia que se abateu sobre o ponto turístico mais visitado da Europa acabou por levantar questionamentos cruciais a respeito da solidariedade, da empatia e das prioridades. Na França, em 48 horas, o volume de doações para a reconstrução superava os R$ 3 bilhões, com as empresas liderando o ranking de contribuições. No Brasil, sete meses depois do incêndio que destruiu o Museu Nacional, no Rio, as pessoas jurídicas contribuíram apenas com R$ 15 mil do total de R$ 1,1 milhão arrecadado.

Em Paris, o fogo abalou um prédio que marcou a história da França e do mundo, templo religioso e marco que testemunhou fatos tão importantes como a coroação de Napoleão Bonaparte. No Rio, além do palácio que serviu de residência à família real portuguesa entre 1808 e 1821, as chamas destruíram a mais antiga instituição científica do Brasil, transformando em cinzas um acervo de mais de 20 milhões de itens, com importantíssimos registros das ciências naturais e antropológicas, fruto de mais de 200 anos de pesquisas, coletas, permutas, aquisições e doações.

A polêmica se desenhou rapidamente, com brasileiros se indignando pelo fato de as empresas do país terem sido tão pouco generosas diante da gigantesca perda. Parece, de fato, um acinte que tamanha tragédia se abata sobre a ciência e a história de um país sem sacudir a empatia dos empresários. Como é possível poder ajudar e, simplesmente, não querer?

Na França, a solidariedade das empresas e dos empresários foi alvo de críticas a respeito da priorização da reconstrução sobre as crescentes demandas sociais do país. Ainda assim, é inegável que a disposição de participar financeiramente da reconstrução da catedral demonstre um traço cultural ainda pouco desenvolvido no Brasil.

Enquanto na Europa e nos Estados Unidos, por exemplo, seja comum que endinheirados destinem parte de suas reservas a universidades, centros de pesquisa e instituições culturais em geral, no Brasil as doações não são uma praxe. Lá fora, a cultura da gratidão ensina bilionários a apoiar as escolas em que se formaram ou que formam seus filhos, a orquestra que os premia com inebriantes concertos ou mesmo iniciativas científicas que busquem a cura para males que os acometem.

No Brasil, infelizmente, parecemos viver a cultura da desconfiança, parente próxima da corrupção sistêmica. Acostumados a ver recursos que encontram desvios e nunca chegam ao destino inicialmente proposto, preferimos, muitas vezes, fechar os olhos – e os bolsos – em situações onde a solidariedade poderia fazer a diferença. Decidimos combater a corrupção e seguimos firmes neste longo caminho rumo a uma sociedade mais honesta e transparente. Mas o episódio de Notre-Dame e sua vexatória comparação com o Museu Nacional mostra que ainda há muito que se transformar em nossa maneira de viver a sociedade e o patrimônio coletivo. Mãos à obra!

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