A Paixão de cada dia

Plutarco Almeida
Jornalista e sacerdote Jesuíta

Publicado em: 18/04/2019 03:00 Atualizado em: 18/04/2019 08:35

Quaresma é tempo de ver e rever o martírio, o sangue escorrendo, as chibatadas dos soldados romanos, a cruz pesada nos ombros de Cristo. Em muitos lugares do Brasil grupos diversos, religiosos ou não, encenam o drama da Paixão de Cristo nesta época do ano. Tem quem faça apresentações luxuosas e tem também quem realize encenações bem humildes, sem outros recursos a não ser a boa vontade dos seus participantes. Nova Jerusalém é sem dúvida a encenação mais conhecida, reunindo milhares de espectadores ao longo de sua temporada. O seu crescimento foi tão grande que hoje representa um elemento importante em termos econômicos também. Para além dos aspectos artísticos, o espetáculo movimenta a economia de toda a região e serve de atrativo turístico para o estado de Pernambuco.

Nos anos 80 fui ver o espetáculo no interior pernambucano. O tempo passou, não sei se mudei para melhor ou para pior, mas o fato é que o tempo muda e a gente muda com ele. Hoje não voltaria a correr feito um doido de um cenário para outro tentando achar o melhor lugar para assistir ao espetáculo. Com todo respeito a quem faz e a quem assiste, não sinto mais nenhuma atração por esse tipo de coisa. Não consigo mais enxergar nem a sua dor nem a sua graça. Tudo me parece tão artificial, tão distante de mim! Não vejo sentido em contemplar este tipo de passado, cenas repetidas de dores que julgo tão atuais. Para ser sincero, prefiro o drama do cotidiano, a paixão de Cristo atualizada dia após dia pelas ruas e becos, invasões e favelas da nossa cidade. Andando por aí à toa, “sem lenço e sem documento” não preciso pagar ingresso para tocar nas chagas de Jesus, para vê-lo carregar cruzes pesadíssimas debaixo das chicotadas do capitalismo. Isto não é teatro, é simplesmente a realidade cruel onde encontramos sem disfarces, no palco escuro e fedorento da vida, o verdadeiro Cristo, ou melhor “os Cristos”.

Quem sabe um dia a gente consiga ver esses Cristos maltrapilhos e maltratados que diariamente perambulam por aí.  Quem sabe tenhamos compaixão, não a compaixão anual que aparece nas vésperas da Páscoa banhada de chocolate, mas a compaixão que nos anima a fazer alguma coisa pelos mais excluídos da sociedade, essas multidões crucificadas que a Globo jamais mostrará e as redes sociais nunca acharão importante compartilhar. Quem sabe um dia deixemos o sentimentalismo piegas de lado e nos dediquemos a refletir sobre o que fizemos ou estamos fazendo para aliviar as dores desta gente abandonada. Quem sabe um dia, cansados de assistir à Paixão de Cristo nos palcos, debaixo de holofotes e maquiagem, tenhamos olhos para ver o Homem de Nazaré “ao vivo”, ou melhor, quase morto, nos submundos da cidade em que estamos. Não tenho dúvida, precisamos urgentemente de menos espectadores e mais Cirineus!

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