Não se perdeu nenhuma coisa em mim

Luzilá Gonçalves Ferreira
Doutora em Letras pela Universidade de Paris VII e membro da Academia Pernambucana de Letras

Publicado em: 16/04/2019 03:00 Atualizado em:

O livro está sobre a mesa. Atravessou o oceano, chegou até aqui pelas mãos da amizade. O título não poderia ser mais discreto: Poesia. Mas o nome da autora, estampado na capa traz o selo de uma das mais altas vozes da produção poética do nosso tempo, em qualquer país, Sophia de Mello Breyner Andresen. A primeira edição desse livro, de 1944, paga pela própria autora, já anunciava os grandes temas que desenvolveria, ao longo da vida: o “resgate entre ruínas e morte, renascimento da exaltação”, conforme escreveu Pedro Eiras. Uma surpresa, a descoberta da jovem portuguesa – tinha 25 anos - cuja escrita marcada pelo rigor com que palavras e emoção se juntam, surge inteira, inesperada, entregando ao leitor fragmentos de vida, sentimentos e sensações presentes e ausentes, ante a beleza e o horror do mundo, de que o poeta é testemunha. “Não esqueças nunca Treblinka e Hiroshima”, escreve Sophia, que, tendo sido vítima do fascismo (o marido esteve preso por oposição ao regime salazarista) não deixa de se extasiar ante a pureza da água, o esplendor do mar, e experimenta a urgência de eternizar “as coisas do amor” presentes sempre na memória sob forma de palavras despidas da literatura, em “sua forma primitiva e pura”. Pois é preciso lutar contra a palavra vazia, para penetrar no mundo do “dizível” conforme escreve Rainer Maria Rilke. O passado é aqui, fonte de recuperação de lembranças, que entretanto continuam a viver em cada um de nós, apesar da fragilidade do mundo. E Sophia o atesta: “Não se perdeu nenhuma coisa em mim./ Continuam as noites e os poentes / Que escorreram na casa e no jardim,/ Continuam as vozes diferentes/ que intactas no meu ser estão suspensas./ Trago o terror e trago a claridade,/ E através de todas as presenças/ Caminho para a única unidade”. Claro, é doloroso sentir que as coisas passam. Mas sempre houve a certeza de saber, como afirma “cada instante em  mim foi vivo”. E a esperança final, que ela celebra no final do poema intitulado Em todos os jardins: Se todo o ser ao vento abandonamos / E sem medo nem dó nos destruímos, /Se morremos em tudo o que sentimos/ E Podemos cantar, é porque estamos/ Nus, em sangue, embalando a própria dor/ Em gente às madrugadas do amor./ Quando a manhã brilhar refloriremos/ e a alma beberá esse esplendor/ Prometido nas formas que perdemos”.

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