Não temos o que comemorar no dia 31 de março

Carlos André Silva de Moura
Pós-doutor em História, professor da Universidade de Pernambuco

Publicado em: 28/03/2019 03:00 Atualizado em: 28/03/2019 09:19

No último dia 25 de março, o porta-voz da Presidência da República anunciou que o presidente Jair Messias Bolsonaro determinou que o Ministério da Defesa realizasse as devidas comemorações relativas aos 55 anos do “movimento de 1964 no Brasil”. Para o líder do Executivo, a data não se configura como um golpe de Estado, mas uma ação de civis e militares que teve o objetivo de “recolocar o país no rumo”.

As atividades referentes ao evento estavam proibidas desde 2011, quando a então presidente Dilma Rousseff orientou os comandantes militares a evitar qualquer tipo de ação sobre a data. Mesmo assim, alguns atos informais continuaram acontecendo, mas sem o aval do governo federal, seja por seu posicionamento político ou pelos avanços nos debates sobre a estabilidade da democracia e a rejeição de qualquer tipo de manifestação que colaborasse com os discursos repressivos.

A determinação do atual presidente nos leva a questionar: será que temos o que comemorar no dia 31 de março? Desde o fim da Ditadura Civil-militar no país (1964 – 1985), vários governantes eleitos pelo voto direto avançaram nos debates sobre a consolidação da democracia. Fernando Henrique Cardoso foi o primeiro presidente sensível às reparações das atrocidades cometidas durante a ditadura, como a assinatura da Lei nº. 9.140, de 4 de dezembro de 1995, que reconheceu como mortas pessoas desaparecidas em razão da participação em atividades políticas entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979.

Alinhada a tais questões, o país possui uma Lei da Anistia, que reconhece os crimes políticos efetuados durante a ditadura, assim como condena em sua Constituição de 1988 qualquer tipo de ataque à democracia e a ordem legal. Do mesmo modo, a Lei nº. 7.170, conhecida como a Lei de Segurança Nacional, estabelece como crime, nos seus artigos 22º e 23º, atos que promovam animosidades entre as Forças Armadas e a sociedade.

Incentivar qualquer tipo de comemoração referente ao período de repressão é um descaso com a História, um atentado à memória individual e coletiva, uma falta de compromisso com a democracia, com a liberdade, com os direitos civis e a legislação vigente. Enquanto os governantes de várias nações trabalham para que os períodos traumáticos vivenciados em seus países sirvam de exemplo, sejam debatidos nas universidades, nos livros didáticos, em museus ou centros de memórias, o presidente do Brasil patrocina um retrocesso jamais pensado em uma democracia sólida.

Comemorar o dia 31 de março de 1964 é compactuar com a tortura e os torturadores, com a vigilância e repressão da imprensa, desrespeitar os direitos sociais e a liberdade de expressão. Defender a ditadura civil-militar é ir de encontro à condição humana, negligenciar todas as normas jurídicas que garantem a liberdade e a democracia em nosso país. Com a autorização estabelecida aos comandantes das Forças Armadas, Jair Bolsonaro presta um desserviço à nação, com uma desastrosa licença que pode colaborar com o retorno de tempos sombrios.  

Como líder do executivo de uma das principais nações do mundo, o presidente deveria patrocinar políticas que garantissem a liberdade. As suas ações deveriam se pautar em aprofundar os trabalhos da Comissão da Verdade, instituídas em 18 de novembro de 2011, que busca examinar e elucidar graves violações aos direitos humanos praticados durante o período de repressão. Precisamos de uma política de preservação da documentação, um debate aprofundado sobre a Lei da Anistia, discutir as propostas internacionais que garantem os direitos humanos e fortalecer a independência das nossas instituições. Incentivar a celebração do golpe de 1964 é um ato inconstitucional, incompatível com o Estado democrático, viola gravemente os direitos dos cidadãos e se configura em ato de improbidade administrativa.

Precisamos trabalhar para passar a limpo um dos períodos mais devastadores da nossa República. Definitivamente não temos o que comemorar, mas precisamos discutir sobre o evento, “para que nunca se esqueça, para que nunca mais aconteça”. A autorização do presidente demonstra que ainda temos um longo caminho até a plena cidadania. Que possamos aprender com a nossa história, cicatrizar definitivamente as nossas feridas e eliminar de uma vez por todas os nossos fantasmas. Golpe não se comemora: repudia-se.

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