Os 482 anos do Recife

Maurício Rands
Advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxford

Publicado em: 11/03/2019 03:00 Atualizado em: 11/03/2019 08:32

Algumas tardes, mamãe nos fazia vestir roupa nova. Íamos ao consultório de Adauto, nosso dentista. Ou à academia de judô de Kawamura, na rua do Sossego. Mas o prêmio vinha depois. Um passeio pela Viana Leal, para andar de escada rolante, na rua da Palma. Ou pela Sloper, quanta elegância! Depois de passar pela Sertãzinha e comprar botão de chifre, o ponto alto: tomar um sorvete de duas bolas de chocolate na sorveteria dos passarinhos, vendo o colorido deles e o cantar de quem sonha com a liberdade. Como o fazem até hoje os recifenses, que aqui não é torrão de conformados. Quando adoecia, mamãe comprava, na Confeitaria Confiança, na rua da Imperatriz, o melhor bolo que já vi no mundo. Um bolo de xadrez, mas não como esses que ainda existem. Tinha pedaços de chocolate maciço e outras guloseimas que ainda hoje me fazem salivar. Pra ganhar um bolo daqueles e ficar em casa, até valia a pena uma gripezinha fuleira. Alguns sábados papai nos levava para cortar o cabelo no barbeiro pertinho do bar Savoy, acho que pra nos mostrar quão bom era o vizinho do mestre dos cortes. Para que adivinhássemos, com Carlos Pena Filho, que ali ‘estavam trinta copos de chopp, trinta homens sentados, trezentos desejos presos, trinta mil sonhos frustrados’. Outros sábados, tio Patápio, com seu jeep sem capota e cantando Roberto Carlos, pegava-nos em Campo Grande para nos levar às matinês dos cinemas São Luís, Moderno, Art Palácio ou Trianon. Mais tarde, morando em Natal, às vezes vinha no ônibus da Nápoles que aqui chegava às 5h da manhã. Adorava chegar cedinho, quando a cidade se despreguiçava. Impressionava-me a disposição dos homens e mulheres do povo que madrugavam para pegar o segundo ônibus de destino ao trabalho. Ou que chegavam para abrir lojas ou armar tabuleiros. Como me atraía o vuco-vuco do Mercado de São José, onde me parecia que tinha tudo que existia e o de que podíamos precisar na vida. Difícil explicar a atração que a cidade, despertando, me despertava. Da estação ia a pé tomar o café da manhã no Grande Hotel, na av. Martins de Barros. Que luxo! Mais adiante, no início do meu namoro com Patrícia, virávamos noites na Portuguesa, ali embaixo do prédio JK, onde Celso Furtado instalara a Sudene. Como traduzir para a meninada de hoje o que experimentávamos, vindo de uma noitada na Portuguesa, ao ver raiar um novo dia atravessando a ponte Princesa Isabel, no caminho da rua da União, onde ela morava? O cenário só aumentava o enebriamento pelo amor descoberto. A Faculdade de Direito, para nós, era o centro do Recife. Em torno da qual ficavam a Livro Sete e o seu bar, o Pega-Bom, o Beco da Fome, o Moscouzinho. Onde fazíamos o balanço das leituras e da militância. E onde falávamos de boemia, redemocratização, sindicalismo e revolução. Numa tarde de 6ª feira, honrados pela companhia do nosso professor Rui Antunes, num bar de nome alemão que não recordo, divertiu-nos o comentário do erudito mestre sobre a sensação do dever cumprido que ele adivinhava no semblante das funcionárias da Lobrás que ali passavam para pegar seu ônibus depois de uma semana dura. Naquela hora, todas estavam muito mais bonitas.

Para quem nasceu e viveu no Recife, essa é a ordem natural. O centro do mundo é aqui. Vimos o mundo, que ele começa no Recife. O menino cresce e vagueia por outras plagas. Conhece lugares e pessoas que nunca imaginara. Flanando, estudando e trabalhando. Mas sempre comparando com o que viu e sentiu no seu Recife. Como conhecer é comparar, imagina que, assim, pode entender um pouco as causas das desventuras da nossa terra e da nossa gente. E cada vez mais se irrita com os responsáveis por tanta mazela na vida dos recifenses. Porque, sim, as iniquidades e os sonhos cancelados têm causas e responsáveis. Que outros não podem ser que não os que sempre tiveram mais oportunidades. Mas que de alguma forma, por egoísmo ou cegueira, renunciaram à oportunidade de transformar o torrão que aprendemos a amar.

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