De que depende a democracia

José Luiz Delgado
Professor de Direito da UFPE

Publicado em: 02/03/2019 03:00 Atualizado em: 02/03/2019 08:52

Se ninguém pode assegurar que nunca, jamais, em tempo algum, nem nos próximos 10 ou 20 ou 100 anos, as Forças Armadas voltarão a intervir na política brasileira, para derrubar um governo e instituir outro, – o que é, então, que as retém e faz com que  não intervenham? O que garante a continuidade do sistema democrático? De que a democracia depende?

Errará quem imaginar que é a pura concordância dos militares com a orientação política adotada pelo governo. Estamos cansados de ver os militares obedecendo a governos que não são, visivelmente, de nenhuma simpatia deles. O culto da hierarquia e da disciplina, marca característica e essencial das Forças Armadas, faz com que sigam e cumpram ordens mesmo não gostando delas.  Em casos extremos reagirão, sim, e até deporão governos, como já fizeram várias vezes – mas de modo geral são disciplinadas e obedientes e, de fato, não gostam de derrubar presidentes.

Mais ainda errará quem pretender que a Constituição deveria expressamente proibir os militares de dar golpe. Como houve quem sugerisse nos debates constituintes de 87/88. Ah, se providência desse tipo pudesse ser eficaz! Papel suporta tudo e, evidentemente, por si só, não resolve nada. E se uma norma dessas, incluída na Constituição, fosse eficaz, isso somente significaria que, inexistindo antes essa norma, os golpes anteriores dados pelos militares teriam sido... constitucionais!

E então? Se nem a Constituição adianta? Penso que, bem examinadas as coisas, a continuação da democracia depende de uma minúscula realidade, de um quase nada: apenas da vontade das partes. Vontade de respeitarem a Constituição, vontade de cumprirem as regras do jogo. Partes aqui são, essencialmente, o governo e a oposição – cada uma com sua pretensão mais do que legítima, aquele, de continuar no poder, e a outra, de inverter as posições e virar governo. O essencial é que uma e outra queiram perseguir esses objetivos pelos meios definidos na Constituição e somente por eles. Não queira o governo continuar no poder mas concertando um golpe de Estado, como Getúlio fez em 37, por exemplo. Nem queira a oposição tomar o poder derrubando o governo, como aconteceu em 1889, em 1930, em 1964. Havendo essa disposição interior tanto no governo quanto na oposição, a prática da democracia continua. Não havendo, planejando o governo manter-se no poder por outros meios, ou imaginando a oposição tomar o poder sem ser pela voz das urnas, a democracia corre risco.

Essa vontade sendo reiterada, sendo afirmada e reafirmada ao longo das gerações, renovando-se sucessivas vezes, vai gerando uma cultura, um hábito, uma mentalidade geral, a consciência, em todos os cidadãos, de que a democracia é mesmo o melhor dos regimes – ou o pior deles, como dizia o magnífico Churchill, desde que excluídos todos os outros... Então, um século de experiência democrática, sem interrupções, dois séculos, três séculos, podem permitir concluir que ali a democracia está consolidada, passou a ser instituição nacional, convicção geral, modo de ser do país. Será o caso da Inglaterra ou dos Estados Unidos. Não é, ainda, o da França, nem o da Alemanha ou da Itália, nem o da Espanha ou Portugal. Quando será o do Brasil?

Os comentários abaixo não representam a opinião do jornal Diario de Pernambuco; a responsabilidade é do autor da mensagem.