Resistência e militância na ficção

Raimundo Carrero
Escritor e jornalista

Publicado em: 25/02/2019 03:00 Atualizado em: 25/02/2019 08:42

Aproveito os estudos sobre o romance Recordações do Escrivão Isaías Caminha na Oficina de Criação Literária para escrever um novo livro de reflexões sobre a arte do romance, considerando, sobretudo, os aspectos mais decisivos da resistência e militância política no Brasil pela obra de ficção. Para isso tratei de identificar os elementos a que Lima Barreto recorre a partir da sua natural revolta contra o meio social em que viveu no começo do século 20.

Nas primeiras palavras deste romance – o primeiro que publicou mas não exatamente o primeiro que escreveu – Lima, através do seu alter ego, Isaías Caminha, lança luzes sobre o seu projeto literário, considerando: “A tristeza, a compreensão e a dificuldade”: Aí está, portanto, a chave desta obra renovadora e provocadora, a indicar como tudo se desenvolverá.

Ainda na primeira página, o autor questiona a família brasileira vendo no pai a figura heroica que comandará o caminho da casa com inteligência e brilho, embora com defeitos, enquanto a mãe se revestirá de humildade e silêncio, relegada apenas aos trabalhos domésticos. Sem dúvida que entra aí outro elemento significativo do romance e da obra do consagrado escritor carioca: a ironia. Destacando, ainda, que o pai é um padre, o que já é suficiente para contestar a ideia agregadora da família. À mãe restarão a tristeza e a humildade.

Lima parece apontar este tipo de família como o retrato de uma sociedade que desde sua formação apresenta problemas insuperáveis e que, por isso mesmo, não pode ser exemplar. Até porque, neste momento, a Igreja apresenta-se como desagregadora, considerando-se que um padre faz votos de celibato.    

O pilar de sustentação social, a Igreja, é desmontado para abrir outra questão igualmente séria e demolidora: Se a sociedade repousa nos ensinamentos da Igreja como pode ser exemplar e forte se esta Igreja não é uma fortaleza?

É claro que tudo isso leva o personagem à revolta e, por isso mesmo ele recorre à ironia, considerando que o casamento de uma mulher livre com um padre é, ele próprio, uma ironia social. O escritor não faz análises ou reflexões até porque seria um erro literário, basta a ação, basta o exemplo, literatura é cena não é exposição inútil.  Vem daí a ausência de monólogos ou de solilóquios, como exemplo.

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