Quem fala e como fala na prosa

Raimundo Carrero
Escritor e jornalista

Publicado em: 28/01/2019 03:00 Atualizado em: 28/01/2019 08:44

Ainda muito jovem, no início da minha carreira literária aí pelos anos 70 do século passado, participei de uma longa e saudável conversa entre os escritores Ariano Suassuna e Maximiano Campos no  terraço senhorial da residência do autor de “Sem Lei Nem Rei”, em Casa Forte, sobre a linguagem da ficção brasileira.

Maximiano defendia o ponto de vista Regionalista de que a linguagem deve ser correta, limpa e gramatical, com exceção apenas para o coloquial quando os personagens falam e revelam suas características regionais, vícios e gírias que terminam por enriquecer o padrão clássico,  documentando um modo muito singular da linguagem brasileira, Ariano demonstrava que a literatura é exemplo e que, por isso mesmo, deve chegar ao leitor sempre de maneira correta. Até para corrigir e educar.

Basta observar O Auto da Compadecida, João Grilo e Chicó conversam constantemente, mas não dizem uma só palavra fora do padrão clássico. Não são nem exagerados nem afetados, mas demonstram a rudeza do pensamento em exemplos e observações na construção do raciocínio. A fala dos dois corresponde, em construção, à sintaxe do bispo e do padre que são as mesmas do cangaceiro e do padeiro. É o suficiente para padronizar a linguagem, sem deixar de ouvir a voz do povo.

Para examinar a questão nas minhas aulas da Oficina de Criação Literária recorro a Graciliano Ramos e a Lima Barreto, o primeiro conservador na linguagem, disposto a escrever e reescrever dezenas de vezes, observando as regras gramaticais padronizadas, cortando adjetivos e advérbios, posicionando o pronome no lugar certo, enquanto Lima considera a ideia, o discurso em primeiro lugar mesmo que seja obrigado a cometer um cacófato escandaloso, mesmo quando não seja   linguagem popular ou coloquial.

Vejam o exemplo de uma frase em “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, de Lima Barreto: “Revoltava-me que me obrigassem a despender tanto força de vontade, tanta energia com coisas em que os outros pouca gastavam.” O cacófato – caga – é horrível. Neste caso, o mau gosto reforça a ideia. E, para o autor, é mais importante a ideia.

O exemplo de Graciliano Ramos aparece em “Vidas Secas” no momento em que o Soldado Amarelo convida Fabiano para jogar baralho. Confuso e reticente o vaqueiro não sabe dizer não e, para não desagradar, responde. “ É conforme, quem sabe, talvez. Tenho dito.” Sem esquecer que ele idolatra Seu Inácio da Bolandeira, em vê até mesmo um intelectual matuto, leitor que era, um tipo cheio de sabedorias. Capaz de muitas proezas. Graciliano evita documentar a linguagem do vaqueiro e cria uma nova, que pertence ao seu campo de invenção.

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