Uma parte bela e desprezada da cidade

Luiz Ernesto Mellet
Gestor governamental da Secretaria de Planejamento de Pernambuco.

Publicado em: 25/01/2019 03:00 Atualizado em: 25/01/2019 08:51

O capinzal nas várzeas alagadas do Beberibe, abarcando da ribeira do mar até o varadouro, deu lugar a um importante sítio de luta na resistência contra os holandeses durante a primeira metade do século 16. Nas imediações desse extenso charco, que servia para exploração de sal, estava a vivenda de Francisco do Rego Barros. Emboscadas eram traçadas ali para impedir a construção do Forte do Brum – no istmo entre Recife e Olinda – e, assim, frear a expansão flamenga.

A área das salinas constituía rota estratégica na defesa dos engenhos de açúcar situados nos arrabaldes. De modo que redutos com fossos cavados em volta e protegidos por estacas surgiram no local. Alguns com canhões, como nas trincheiras de Luiz Barbalho. Os combates travados eram de extrema violência. Os derrotados tinham os membros decepados e suas cabeças seguiam espetadas nas lanças dos vitoriosos numa marcha medonha. Contudo, os insurrectos não seriam páreo para o exército invasor – bem mais numeroso e armado.

A localização privilegiada das salinas faria com que os holandeses erguessem o forte Southpanne. Numa tarde de um dia consagrado a Santo Amaro, 15 de janeiro de 1649, a fortaleza caiu. O rompimento dos seus muros de pedras marcaram a retomada do Recife. Anos mais tarde, Francisco do Rego Barros ergueria próximo dali uma capela em devoção ao santo que mesmo a Igreja Católica não sabe ao certo as origens.

Esses episódios germinais transmitem um pouco do passado fabuloso de um território que é desconhecido pela maioria dos recifenses. E não apenas pelo seu aspecto histórico. A singular geografia à beira do estuário dos rios Beberibe e Capibaribe faz de Santo Amaro um dos pedaços mais bonitos da cidade. E também um dos bairros mais curiosos. Afinal, poucos locais abrigam dois cemitérios tão próximos um do outro.

O cemitério dos Ingleses foi o primeiro da cidade. Data de 1814. Ali estão os restos de Abreu e Lima. Sendo maçônico, o bispo Cardoso Aires não permitiu que o corpo do generalíssimo de Simón Bolivar fosse sepultado no Bom Jesus Cemitério da Redenção de Santo Amaro das Salinas, cuja pedra inaugural seria assentada por Francisco do Rego Barros, o conde da Boa Vista.

Personagem central na história do Recife, Rego Barros teve uma vida de novela. Com quinze anos ingressou no regimento de artilharia e participou da Revolução de 1817. Foi preso e mandado para Lisboa. De volta, entrou na política. Assumiu a presidência da província de 1837 a 1844 – período em que refez as pontes do tempo dos holandeses e construiu prédios emblemáticos como o Teatro Santa Isabel e o Palácio Campo das Princesas.

Afora seus atributos históricos, geográficos e arquitetônicos, Santo Amaro preserva aquela atmosfera própria a uma cidade interiorana, mesmo estando tão perto do agitado centro da cidade. No cair da tarde – enquanto as garças espanejam sua plumagem alva nos arbustos verdes do mangue e os barcos coloridos se acham mais uma vez atracados sob a Ponte do Limoeiro –, os moradores trazem cadeiras para jogar conversa fora com os vizinhos na calçada.

Essas imagens depõem contra a ideia de lugar violento que se faz dali. Mancha que se apaga de acordo com os dados do Pacto pela Vida em 2018. Santo Amaro foi um dos bairros da capital que registrou maior queda de crimes violentos letais intencionais (CVLI) e crimes violentos ao patrimônio (CVP). Talvez esses índices ajudem a remover de vez o estigma que carrega essa aprazível e bela, mas desprezada parte da cidade.

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