Liberalização das Armas?

Maurício Rands
Advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxford
Twitter: @RandsMauricio

Publicado em: 21/01/2019 03:00 Atualizado em: 21/01/2019 08:49

No Brasil, de um total de 849.387 homicídios entre 2001 e 2016, 592.672 decorreram de armas de fogo. Ou seja, 70% do total. A partir do Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826, de 22/12/2003, que dispõe sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição), houve queda no ritmo de aumento de homicídios. O estatuto foi regulamentado pelo Decreto nº  5.123, de 1º/7/2004. O recente decreto do Governo Bolsonaro (nº 9.685, de 15/1/2019) flexibiliza o anterior. Facilita a posse de armas, não mexendo com o porte. A diferença entre posse e porte é que, na primeira, as pessoas podem manter uma arma de fogo em casa ou no local de trabalho. Já com o porte, o cidadão tem o direito de portar, transportar, comprar, fornecer, emprestar ou manter uma arma sob sua guarda. Só nesse caso pode sair à rua com ela. Entre outras mudanças, o novo decreto amplia as justificativas para a posse de armas. O decreto anterior não explicitava quais eram os casos de necessidade para se ter uma arma em casa. O novo texto enumera as hipóteses que podem ser consideradas como ‘efetiva necessidade’, entre as quais ser dono de estabelecimento comercial ou industrial, ou morar em área rural, ou em área urbana de estados com altos índices de violência. Para o exame que a Polícia Federal faz sobre as justificativas para a posse, o novo decreto adota o critério da presunção da veracidade da declaração do interessado. Ademais, a comprovação periódica de atendimento dos requisitos de registro da arma perante a PF (renovação do certificado de registro) teve o prazo ampliado de 5 para 10 anos. Foi acrescido um § 8º ao art. 12 do decreto para permitir o registro de até 4 armas para uma mesma pessoa.

Documento da Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da Republica, de junho/2018, concluiu que uma política de restrição ao acesso às armas de fogo tende a diminuir o número de homicídios. Depois do Estatuto do Desarmamento o ritmo do crescimento dos homicídios por armas de fogo diminuiu. Entre 1996 e 2003, a taxa média de aumento era 6,7%. Passou para 1,7% no período posterior à sua vigência. Um estudo do professor Júlio Jacobo estima que o Estatuto teria poupado 133.987 vidas até 2014. Sabe-se que a arma de fogo não é a causa em si dos assassinatos. A violência tem raízes profundas. A exclusão, a desigualdade e a impunidade  expandem o domínio do crime organizado. As grandes vítimas são os jovens da periferia que se envolvem com o tráfico. Claro que não é imaginável resolver o problema com a simples proibição das armas de fogo. Mas são muitos os estudos que mostram ser a facilidade do acesso um dos fatores que aumentam o total de assassinatos. Então por que ampliá-los com uma política de expansão do armamentismo? O bandido geralmente é mais hábil no uso da arma do que o cidadão comum. Há estatísticas mostrando ser maior a probabilidade de morte entre as pessoas assaltadas quando elas estão na posse de armas. Mais armas significa mais violência. Aumenta o mercado ilegal de armas de fogo porque a facilitação do acesso vai barateá-las. Mais armas também significa mais crime de proximidade. E, portanto, mais violência contra as mulheres e a comunidade LGBTI.

Os que defendem a política de liberalização esgrimem o argumento da dissuasão. Dizem que o bandido não vai ser tão ousado porque, ao inverso do que hoje ocorre, vai calcular que a vítima também esteja armada e pronta para reagir. Ora, o noticiário mostra todos os dias os casos de bandidos serem baleados por cidadãos ou policiais à paisana no instante mesmo em que praticam o assalto. Eles já sabem que podem sofrer reação. Ademais, com mais pessoas tendo acesso às armas, o estoque disponível de armas vai aumentar. Quem garante que a ousadia do crime organizado não vai ampliar as ações nos estabelecimentos e casas de família buscando apreender mais armas? Promessas populistas de campanha não deveriam ser manipuladas para manter a popularidade quando surgem as primeiras dificuldades do governo. Governos precisam reconhecer que nem todas suas propostas de campanha são unânimes ou exequíveis. Nem mesmo entre o expressivo contingente que o elegeu. Por isso, mesmo em círculos fervorosamente bolsonaristas, surgiram vozes em desacordo com a iniciativa de liberalização da posse de armas.

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