Retórica, pragmatismo e a venda da Embraer

Antônio Cruz Júnior (Especialista em políticas públicas e gestão governamental)
e Rafael Dubeux (Doutor em Relações Internacionais pela UnB)

Publicado em: 17/01/2019 03:00 Atualizado em: 17/01/2019 08:58

A Embraer é o maior e mais bem-sucedido esforço nacional de estabelecer uma parceria saudável e competitiva entre empresa, academia e Estado. Resultado de anos de investimentos públicos e privados, a empresa é a verdadeira joia da coroa do empreendedorismo brasileiro, líder no mercado em que atua, com grande número de fornecedores nacionais e engajada em atividades tecnológicas de ponta. Sua venda a preço vil para a gigante americana Boeing só pode ser qualificada como uma capitulação: é conformar-se que só cabe ao país ser produtor de produtos primários sem agregação de valor.

Investimento estrangeiro direto (IED) é frequentemente positivo para o país por trazer tecnologia e know how que auxiliam no aumento da produtividade e ampliam a concorrência no mercado doméstico. Mas “frequentemente” não é o mesmo que “sempre”. Por isso, praticamente todos os países relevantes instituíram mecanismos de regulação do IED em setores estratégicos para a defesa nacional e para a proteção de tecnologias sensíveis.

Nos EUA, por exemplo, há uma comissão vinculada ao Departamento do Tesouro, que analisa a conveniência  dessas operações, a CFIUS (Committee on Foreign Investment in the United States). A Alemanha também dispõe de poderes para bloquear investimentos estrangeiros que ultrapassem 10% do capital de empresa local. O Reino Unido tem, igualmente, regras para verificação de investimentos estrangeiros diretos de acordo com a relevância do mercado e segundo seus impactos em tecnologias sensíveis. A União Europeia está debatendo a fixação de uma regulação equivalente para o conjunto do mercado comum da região

No caso brasileiro, prevalece uma visão para lá de ingênua sobre o papel do IED. Todo investimento estrangeiro é visto como orgulho nacional, sinal de confiança no país. Persio Arida, por exemplo, um de nossos destacados economistas, já declarou recentemente que “todo investimento estrangeiro é bem-vindo”.

No caso da Embraer, embora não tenhamos uma regulação abrangente sobre IED, o governo brasileiro dispõe de ações especiais (golden share) que conferem poderes de veto a esse tipo de operação. Esses poderes singulares foram conferidos durante o bem-sucedido processo de privatização da empresa. Assim, ainda que não haja essa regulação abrangente, existe nesse caso concreto uma ferramenta disponível para barrar a operação.

A Embraer é talvez a mais singular empresa de tecnologia brasileira. Resultado de anos de esforços conjugados públicos e privados, desde a formação do CTA e do ITA, suas primeiras aeronaves desafiaram o senso comum de que não tínhamos chance no setor, passando pela privatização e pelos ganhos de competitividade da empresa. É o mais exitoso exemplo de parcerias público-privadas, com o Estado assumindo os maiores riscos nas etapas iniciais do processo e na sequência permitindo que o setor privado assumisse as rédeas e acelerasse os passos para conferir competitividade ao negócio, embora sempre contando com o apoio público por meio de formação de mão-de-obra qualificada, pesquisa e compras públicas.

A proposta apresentada separaria a Embraer em duas: uma nova empresa, controlada pela Boeing com 80% do capital, cuidaria do setor de jatos comerciais. A antiga Embraer continuaria existindo apenas com a divisão de defesa e de jatos executivos, que têm participação bem menor nos resultados da companhia.

Deixar apenas o setor de defesa na “velha Embraer” é praticamente o mesmo que acabar com a empresa. O setor rentável é o de jatos comerciais, responsável por 60% do faturamento e parcela ainda maior de seus lucros. As atividades de Defesa e de jatos executivos representam uma parcela menor das vendas e da rentabilidade e praticamente só são viáveis pela sinergia entre os segmentos. A separação em uma nova empresa controlada pela Boeing e a velha empresa com mercado mais restrito decerto inviabilizará seu modelo de negócios e, especialmente, o desenvolvimento tecnológico local, que a tornou um orgulho nacional.

Argumenta-se que a venda seria inevitável porque a canadense Bombardier, principal concorrente da Embraer em jatos regionais, teria sido comprada pela Airbus, a gigante europeia. A empresa brasileira não teria alternativa senão se juntar à outra gigante do setor, a estadunidense Boeing. Mais um mito a obscurecer o debate. Houve de fato uma parceria da canadense com a europeia, mas a parceria é limitada a uma nova linha de jatos. A Bombardier não deixou de existir: continua sendo uma empresa canadense, sediada em Montreal. A parceria firmada com a Airbus foi feita em conjunto com o próprio governo de Quebec, que é um dos sócios do empreendimento. No nosso caso, se fôssemos seguir o exemplo canadense, seria factível discutir uma parceria com a Boeing, o que é bem diferente de vender o controle da parte rentável e competitiva da empresa.

Situação semelhante à venda da Embraer ocorreu alguns anos atrás com as promissoras empresas brasileiras Alellyx e CanaVialis, focadas em pesquisa na área de biotecnologia, engolidas por outra gigante estadunidense. Depois de adquiridas por preços baixíssimos, seus parques de pesquisa foram praticamente desativados e seus pesquisadores desligados. As compras atingiram o propósito: evitou concorrentes potenciais e bloqueou nossa capacidade de desenvolvimento tecnológico próprio. Quando da aquisição dessas empresas de biotecnologia, o governo não dispunha de golden share para evitar a venda das empresas.

No caso da Embraer, embora não tenhamos uma legislação abrangente para avaliar a sensibilidade das tecnologias envolvidas em aquisições estrangeiras, dispomos da golden share, que, na prática, permite os mesmos resultados. A pergunta inevitável fica no ar: os EUA admitiram que a Boeing fosse vendida para uma empresa chinesa, ou mesmo brasileira? Aliás, não fica no ar: a resposta é evidente.

O governo que ora assume o comando do país tem uma oportunidade única de mostrar que nacionalismo não se limita a ostentar as cores nacionais e uma retórica contundente, mas sim a efetivamente defender os interesses do país, tal qual o fazem outras nações, e, neste caso, reconsiderar o anúncio feito e vetar a venda da Embraer para a Boeing nos moldes propostos. Além disso, o governo poderia propor uma legislação que institua mecanismos de avaliação do investimento estrangeiro direto similar aos que existem nos Estados Unidos e na União Europeia.

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