O Dodge Tupiniquim

Tiago Carneiro Lima
Advogado, sócio de Lima & Falcão Advogados
opiniao.pe@diariodepernambuco.com.br

Publicado em: 14/12/2018 03:00 Atualizado em: 14/12/2018 09:05

O “Dodge Dart” era um carro fantástico. Desejo de consumo de uma geração. Pelo menos, de quem gosta de automóvel, de quem não tem ideias franciscanas a respeito. Andei em um deles, no do professor Ruy Antunes, catedrático de Direito Penal da Faculdade de Direito do Recife (UFPE).

Ruy fora deputado pelo Partido Comunista na Constituinte de Pernambuco de 1947. Era um professor maravilhoso, aulas magníficas. Dava as aulas com um pequeno canivete, descascando pedaços de madeira cilíndricos, tais quais pequenos lápis. Um mistério. Talvez Homero Fonseca possa explicar. De tudo sabe (cadê você, Homero?).

A noite avançava. Rosane no violão. Uma grande farra no “A Nova Portuguesa”. E chega aquele homenzarrão, óculos estilosos, camisa branca, rosto de um deus grego cansado da vida. Talvez cursássemos Direito Penal 2. Foge-me a memória. E, sem pedir licença, sentou-se à nossa mesa.

Sabíamos a sua história de vida. Era muito, muito bem-vindo. Perguntou-nos se conhecíamos Abel Silva. Naquela época, Fagner não era brega. Serrão, Augusto Sampaio, Erikcson Luna, farrista e poeta marginal - era impossível sentar ao lado: não tomava banho! E eu ensaiei “Asa Partida”.

Madrugada, final de farra. Ruy dirigindo devagar; eu, de carona. Falou mal de mim – isso é outra história. Basta dizer que me mandou estudar mais, muito mais. Ele ia para algum canto. E eu querendo ir para “Pasárgada”...

2018. Brasil. Um país complicado, dividido, inseguro, injusto com o seu povo. Um montão de pessoas à procura de um país melhor. E o Ministério Público, e também o Judiciário, não satisfeitos com o imoral, antiético, escarnecedor e injusto aumento de 16% sobre os próprios salários, decidem também brigar pela manutenção do espúrio auxílio moradia!

Ruy Antunes tinha a voz grave, mansa, vida ética, no quesito cidadania. Penso que aproveitava as aulas para descascar velhos pecados, enquanto empurrava um monte de alunos em direção a futuro melhor – pelo qual lutara, e lutava, dando aulas absurdamente exemplares. Sem contar que bebia com os “comuns do povo”, e ainda dava “esporro” em um aluno qualquer, noite alta, no seu belíssimo “Dodge”, cor caramelo.

Mas há um novo “dodge” no Brasil. Tem fala mansa, pausada, de um veludo fúnebre. Esse “dodge” luta pela justiça, disso eu sei. Mas, paradoxalmente, anda lutando por uma enorme injustiça - quando se trata de privilégio corporativo, do qual se beneficia, a si próprio, inclusive.

Por essas e outras, prefiro a versão do automóvel!

Eu precisaria dedicar este artigo a Ruy Antunes? (Professor, aqui entre nós, ainda continuo sem estudar muito. Mas ainda me lembro do seu “carrão, do seu “carão”. E ainda sigo sem comungar com as injustiças).

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