Vanguardas iluminadas

Maurício Rands
Advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxford

Publicado em: 25/03/2019 03:00 Atualizado em: 25/03/2019 08:40

Rosa Luxemburgo (1871-1919), no nascedouro da Revolução Russa de 1917, apontava as tendências antidemocráticas dos bolcheviques. Era cética quanto à concepção leninista de que a emancipação dos trabalhadores seria obra de vanguardas iluminadas. Embora fosse PhD pela Universidade de Zurique, não achava que as transformações sociais fossem obra de uma minoria intelectual que trouxesse ‘de fora’ a consciência de classe dos operários, segundo as expectativas do experimento russo. Essa concepção levou ao partido único e ao controle do estado por sua direção. A História mostrou que o buraco é mais embaixo. A democratização da riqueza e do poder é um processo mais complexo. E que, sufocada a democracia política, com ela se vão as possibilidades de democratização da riqueza. Viu-se também que uma minoria ‘esclarecida’, quando concentra o poder, acaba reproduzindo fenômenos bem descritos por Robert Michels, no seu clássico Political Parties (1915). Para quem as organizações tendem a ser controladas por minorias que reproduzem seus próprios interesses. Embora invocando os ‘interesses gerais’ dos seus representados, as burocracias estariam condenadas a essa ‘lei de ferro das oligarquias’.

Um século depois, muitos parecem desconhecer esses desdobramentos históricos e teóricos. Tome-se a resposta do ministro Sérgio Moro ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia: ‘Talvez alguns entendam que o combate ao crime pode ser adiado indefinidamente, mas o povo brasileiro não aguenta mais’. À parte a platitude de que ninguém suporta tanta violência, a velha pretensão. Ele e talvez alguns de seus próximos é que sabem o que o povo realmente sente. Que não aceita adiar o combate à violência. É mesmo? Não diga! O que o iluminado não percebe é que inexiste uma única fórmula para combater o crime. Embora ele esteja dando importante contribuição contra a corrupção, sua receita não é absoluta. Ele não tem a delegação de Deus para dizer que quem dele discorda é leniente nessa guerra contra o crime. O mundo civilizado sabe que há um cardápio vasto de receitas. E que o único árbitro das escolhas desse cardápio é o soberano, o povo. Que deve se expressar diretamente (via plebiscito ou referendo) ou indiretamente (por seus representantes eleitos). Não é um pequeno grupo de iluminados que pode substituir a complexidade da deliberação democrática. É falso o dilema ‘Lava-Jato versus defensores da corrupção’. Pode-se lutar contra a corrupção, apoiar a LJ e, ao mesmo tempo, discordar de seus atos que desbordem das normas do processo penal e das garantias constitucionais. Aliás, deve-se.

Por desconhecer tudo isso, o ministro Sérgio Moro tem sido desautorizado até mesmo por quem o nomeou. Como foi o caso da ordem para ‘desnomear’ Llona Szabó para o posto de membro do Conselho de Política Criminal e Penitenciária. E quando pretendeu jogar a opinião pública contra o presidente da Câmara ao forçar a tramitação do seu projeto de lei anticrime. Teve que ser advertido de que um ‘funcionário de Bolsonaro’ não tem autoridade para ditar ao Poder Legislativo o conteúdo e o ritmo das decisões dos representantes do povo. Na ocasião, Maia lembrou que muito do pacote de Moro teria sido mero ‘copiar e colar’ de proposta anterior do ministro Alexandre de Moraes à qual a dele ficou apensada. Goste-se ou não do Legislativo, é lá que se delibera sobre as políticas públicas. Simplesmente porque a Constituição democrática assim o determinou. A pretensão de alguns poucos paladinos de substituir os ritos da democracia não dá certo. Uma vanguarda de iluminados cheia de ‘boas intenções’ levou a Rússia a uma autocracia que não emancipou seu povo. Nem política, nem econômica, nem socialmente. Moro e seu grupo, embora com sinais ideológicos opostos aos dos bolcheviques, parecem repetir o mesmo vício de origem: a pretensão de uma ‘vanguarda de iluminados’ a ditar o caminho aos incautos ou mal-intencionados. Um pouco de humildade democrática não faz mal. Nem de respeito aos princípios e procedimentos constitucionais, aí incluído o da separação dos poderes. Também não custa olhar um pouco para a História.

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