A MP 873 e o financiamento dos sindicatos

Maurício Rands
Advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxford

Publicado em: 07/03/2019 03:00 Atualizado em: 07/03/2019 09:29

No mundo inteiro os sindicatos ajudam a diminuir as desigualdades. De renda e de poder. Para alguns, são ‘motores da cidadania’, na metáfora do professor Peter Ranis, do York College and CUNY Graduate Center. Promovem a participação dos que trabalham nas decisões das empresas. Diretamente, como na Alemanha e na Escandinávia, onde os representantes sindicais têm assento no conselho de administração. Ou indiretamente, como nos EUA, no Reino Unido, na Itália e demais países que valorizam a negociação coletiva entre trabalhadores e empresas através de suas entidades de classe. Democracias maduras costumam ouvir os sindicatos na formulação e implementação de políticas públicas. O diálogo com o mundo do trabalho permite que os interesses dos desfavorecidos sejam considerados. Quando a participação dos trabalhadores é sufocada, quase sempre aumenta a concentração de renda e riqueza.

A MP 873 ignora toda uma construção doutrinária e legal dos povos ao longo da evolução da democracia. Interfere na autonomia dos trabalhadores e empresários para coletivamente decidirem como financiar suas entidades. Visa a enfraquecer os sindicatos asfixiando-lhes os recursos. Burocratiza com boletos e autorizações individuais a contribuição dos trabalhadores e empregadores para o sustento das próprias entidades. Remete a um ato positivo individual, algo que é inerentemente coletivo: a decisão dos trabalhadores e das empresas de se organizarem em sindicatos. Que, para se organizar, têm que cuidar do financiamento dessas entidades. No caso dos trabalhadores, a única condição viável é que esse financiamento seja coletivo. Impedir que as instâncias coletivas de decisão, como as assembleias, autorizem os descontos em folha de pagamentos é o mesmo que inviabilizar esse financiamento coletivo. Sem que os direitos tenham condição de viabilização, a sua proclamação abstrata na lei equivale à mera letra morta. À sua negação, na prática. É o mesmo que prever liberdades civis, sem assegurar os pressupostos para o seu exercício: os direitos sociais e econômicos. Como já se viu na história do último século, a ausência desses pressupostos condenou milhões de seres humanos a terem liberdade... de morrer de fome.    

A autonomia privada coletiva está inscrita na CF/88. Querer reduzir institutos do Direito Coletivo do Trabalho à esfera de direito individual é regressão que ignora a evolução já centenária do Direito do Trabalho no mundo. Como já lembrava o grande jurista britânico, Otto Kahn-Freund, o ‘colletctive laissez-faire’, onde trabalhadores e empresários celebram a negociação coletiva em liberdade, é conquista civilizatória de uma democracia madura. E a negociação que ocorre no mundo do trabalho centra-se no sujeito coletivo. Por uma razão elementar. Individualmente, o empregado está sujeito ao desequilíbrio de uma relação que, na essência, é desigual. A empresa detém os poderes de investimento, direção e controle do ambiente de trabalho. Somente quando se organiza coletivamente, o trabalhador pode diminuir essa desigualdade ontológica. Por isso, desde a revolução industrial, a história do trabalho tem evoluído no sentido de reconhecer, valorizar e garantir a ação sindical através de dois mecanismos: a negociação coletiva, no caso de países que adotam o ‘collective laissez-faire’, e a legislação estatal, nos países de tradição legal romanística.

A MP 873 é ainda mais grave na atual conjuntura em que os primeiros passos do novo governo pecam por uma solene ausência. A das políticas sociais que amenizem a desigualdade e o sofrimento dos pobres. E também por algumas propostas contrárias aos direitos desses segmentos desfavorecidos: as restrições ao ‘Minha Casa, Minha Vida’, ao BPC, e à aposentadoria rural. Essa ausência de políticas para os mais pobres, aliás, já está sendo vista como uma grande avenida para os partidos políticos de esquerda. Sua edição, às vésperas do carnaval, denota alguma falta de convicção quanto à justiça do novo mecanismo de financiamento sindical que está sendo proposto. Revela oportunismo tático, mormente pela ausência de consulta e diálogo prévio. Difícil não entender que visa a enfraquecer o movimento sindical às vésperas do debate que o país vai travar sobre o novo modelo previdenciário. Parece ter sido medida preparada às pressas na fornada da equipe econômica, cujas pouca experiência e inabilidade política já começam a preocupar. Pode ser também uma manobra tática para desviar o foco da ação dos antagonistas. Mas que, ao final do dia, pode se revelar contraprodutiva. Seu exagero e desproporção podem fomentar alianças que resultem no enfraquecimento dos seus proponentes.

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