É frevo de rua, meu bem

Jairo Cabral
Mestrando em História na Unicap

Publicado em: 27/02/2019 03:00 Atualizado em: 27/02/2019 08:32

Em fevereiro tem carnaval e Pernambuco ferve no ritmo avassalador do frevo de rua, fruto da mistura musical de ingredientes contidos no galope, na quadrilha, no maxixe e principalmente no dobrado e na polca. Esses gêneros faziam parte do repertório das bandas militares aquarteladas no Recife no final do século 19 e no início do século 20. A banda do 4º Batalhão de Artilharia, popularmente conhecida como Quarto e a banda da Guarda Nacional apelidada de Espanha, regida por Pedro Francisco Garrido, de nacionalidade espanhola.

O frevo de rua, exclusivamente instrumental, é acentuadamente viril. Faz ferver o sangue do pernambucano e entusiasma quem o contempla, na magia envolvente do seu ritmo aloprado. Espeta a quem o olha da calçada e enlouquece a quem nos seus braços se atira. É fogoso como um casal no cio, na fúria incontrolável dos hormônios prazerosamente enlaçados. Não pede licença, invade. Não pede passagem, arrasta. No fulgor endemoniado dos seus metais, conduz o povo no cortejo delirante de Momo. Devasta a rua tresloucado como um furacão sonoro, contrariando os bons costumes e rompendo as amarras de quem tenta detê-lo. É um choque de prazer, que entra pela cabeça, toma conta do corpo e se expressa no pé, no malabarismo acrobático do passo.

A dança do frevo, que começou a tomar forma com os capoeiras, que acompanhavam as bandas militares pelas ruas do Recife, é um misto de criatividade, improviso e passos eternizados no tempo pelos brincantes do passado e do presente, como Egídio Bezerra lá da Torre, Arnaldo Francisco das Neves – o Coruja, Nascimento do Passo, Mestre Meia-Noite, o corpo do Balé Popular do Recife, os grupos Brincantes da Ladeira de Olinda e Guerreiros do Passo do Hipódromo, o professor e passista Otávio Bastos e as passistas e artistas, Flaira Ferro e Maria Frô. É na ponta do pé que se faz o volteio do parafuso ou saca rolha. É o corrupio que se emenda com o dobradiça, se arremete no tesoura e continua no serrote, no folha seca, no carrossel e no rojão, numa infinidade de outros passos e movimentos que a inventividade do passista produz. É homem, é menino e menina, é frevo mulher se desenhando em contorcionismos impensáveis, que desafiam a lei da gravidade e o padrão estético oficial.

O frevo de rua é bélico na dança, na tessitura musical e no nome de batismo. Canhão 75, Metralhadora Ina, Bomba de Três Estouros, Carabina, Lança Torpedo, Teleguiado, Fortaleza Voadora, Mosquetão. É de abafo no encontro de clubes e troças. Orquestra desafiada, orquestra na leitura corrida da partitura buliçosa. É metal pesado na carga de alta voltagem de trombones, pistons e trompetes, valendo o barulho ensurdecedor do rachado, a exemplo de Fogão, Cabelo de Fogo, Farol Apagado, Freio de Ar. Às vezes é chamado de coqueiro, no Picadinho das notas altas acima da pauta e Só Toca Quem Pode como o maestro Severino Araújo em Relembrando o Norte. Na execução do frevo coqueiro, o músico estufa os pulmões para soprar forte e incendiar a multidão desgovernada no calor da folia contagiante. Às vezes é mais virtuoso, exigindo de clarinetes e saxofones, precisão milimétrica na execução das notas. É o frevo ventania, Tempestade de semicolcheias que mexe com tudo e que encanta o folião ouvinte ou o passista encapetado, que enrosca o corpo na vertigem da dança característica de Pernambuco. Às vezes engana pelo nome manso. Parece calmo, como se domesticado fosse pelo romantismo de um amor vivido, pela saudade do carnaval passado, pelo reencontro inesperado de alguém que o coração não esqueceu.

Último Dia, lágrimas de Folião, Retalhos de Saudade, de autoria do Mestre Vivo Levino Ferreira. Luzia no Frevo, Melancolia, Recordação, de Antônio Sapateiro. A Saudade é Assim, Eu e Você, de José Gonçalves Junior – Zumba. Às vezes é evocativo, memorialista, homenageante. Registra na página do tempo, a história de quem lhe deu vida ou merece citação por uma lembrança carinhosa, por um feito, por uma bravata. Lampião, Corisco, Pilão Deitado, de Lourival Oliveira. Mordido, de Alcides Leão. Duda no Frevo, de Senô. Nino o Pernambuquinho, Lucinha no Frevo, Quinho, do Maestro Duda. Luisinho no Frevo, Clovinho no Frevo, Aninha no Frevo, do Maestro Clovis Pereira. Alô Recife, do Maestro Ademir Araújo Formiga.  Assim é o frevo de rua. Arrebatador e cativante, potente e insolente, transbordando energia na festança carnavalesca que o povo faz.

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