Somei pedaços de mim na caminhada dos meus 93 anos

Marly Mota
Membro da Academia Pernambucana de Letras

Publicado em: 14/02/2019 03:00 Atualizado em: 14/02/2019 08:56

Tenho vários exemplares dos meus “diários” onde, bem ou mal, escrevo o meu dia-a-dia, anotando as minhas andanças desde menina, matuta de água doce; neta mais velha dos avós paternos da casa-grande do Engenho Independência, em Bom Jardim, Região do Agreste Setentrional de Pernambuco. Em época de moagem era uma festa e acolhia todos os familiares. Os netos, eu entre eles, pelos canaviais e quebradas das serras, onde se ouvia o eco das nossas vozes. Ali, aos gritos fiquei encantada ao ouvir a ressonância da minha voz. O feitor designado a nos acompanhar, montado a cavalo, foi falar com o meu avô: - Seu Capitão! Aquela sua neta dos “cabelos de fogo” é doida, não para de gritar e os outros  netos também! Meu avô não lhe deu ouvidos: deixe a meninada gritar. Com os meus paradigmas, não procurei ao longo do caminho por um tempo morto. Muito ao contrário, busquei no tempo o que atiça a minha memória para as recordações boas e outras não tão generosas.  

O livro Pátio da Matriz foi escrito para registrar lembranças e tradições de um tempo, do meu tempo, sem veleidade literária. Publicado em 1965, pela Coleção Concórdia, dinamicamente dirigida pelo escritor Cesário de Melo, traz ilustrações do grande artista Lula Cardoso Ayres.  A 2ª edição do livro, apresentada pela Academia Pernambucana de Letras, em sessão ordinária, ainda festiva pelos 118 anos, traz o selo da Cepe, no ano em que comemora seus 50 anos de atividades, sob gestão dos  brilhantes  Ricardo Leitão e Ricardo Melo.

Em Bom Jardim cidade serrana, de altos e baixos caminhos, contornados por ipês amarelos e sobrados coloniais, num deles moramos, com meus pais e irmãos, De uma das varandas fiz ancoragem na infância e adolescência acompanhando passeios, festas, missas, tudo o que se apresentava no Pátio da Matriz. As noites de maio com seus organizadores, apresentando bandas de músicas, soltando balões e fogos de artifícios, animando o cotidiano dos moradores, O pequeno jornal A Semana, promovendo concurso carnavalesco, o leilão de prendas com Zé Orobó, gritando:

– Quanto dão por esse carneiro gordo e capado?

Bom Jardim me deu as cores em linguagem pictórica, com os pincéis trouxe a cidade às telas, as imagens para a minha casa, realizando exposições de pintura em cidades do Brasil e exterior. É de minha autoria a capa do livro Pátio da Matriz, pintado no mesmo ano do lançamento para uma exposição em 1967 realizada no Hotel São Domingues, no Recife. Não esqueço que Bom Jardim me ajudou a retomar outro caminho, o da expressão de ideias e sentimento da palavra escrita.  

Final da 2ª guerra nos mudamos para o Recife continuei com as aulas de piano e estudei  pedagogia, ensinando no Ginásio da Madalena do escritor e político Aderbal Jurema.  Meu pai gostava de me ouvir tocar a valsa Fascinação, sentado na cadeira de balanço no terraço da nossa casa da Madalena.

Uma certa tarde, com  minha prima Gloria, nos verdes anos, tinha 23 anos, fomos fazer o footing na Rua Nova. Percebemos no passeio alguém nos seguindo. Não era um jovem como os rapazes que conhecíamos e casavam com filhas de usineiros. Em nossa direção, um deles vestia paletó com fumo na lapela. Gloria, indiscreta pergunta: por que o fumo na lapela? Discretamente não disse nada. Na fila de ônibus para o bairro da Madalena, no ponto do Edifício Sulacap, estavam os dois amigos. Por eles fomos seguidas até o portão da minha casa. O que usava fumo na lapela disse não usar o fumo, mas permanecia viúvo com dois filhos.

Meses depois, Mauro começou a me visitar, com o consentimento dos meus pais e cinco meses depois ficamos noivos.  Sacramentou o nosso casamento, na manhã de 24 de fevereiro de 1949, o padre João Motta, seu irmão, grande educador e marcante figura do clero. Após o casamento, houve um almoço para os convidados. Logo após a comemoração nos despedimos dos amigos e parentes, seguindo nosso caminho.

Com a chegada dos meninos, meus amados meninos: Maurício, Eduardo, Sérgio, Luciana, filha de Mauro do primeiro casamento, também minha filha, sempre me chamou mamãe e a minha caçula, Teresa Alexandrina; todos íntegros, irmãos, companheiros, amigos, bem orientados; a família floresceu com os netos e bisnetos.

Agradeço afetuosamente a presidente da Academia Pernambucana de Letras, Margarida Cantarelli, a vice Luzilá Gonçalves, ao amigo e acadêmico Paulo Gustavo de Oliveira, aos ilustres confrades e confreiras amigas, o afetuoso empenho e carinho em lançar o meu pequeno Pátio da Matriz, comemorando os meus 93 anos. Uma gratidão imensa à minha família, aos queridos amigos que me acompanharam nesse longo e espiritual caminho. Deus seja louvado!

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