Paulo Freire e o combate à Aids na África

Jailson Correia
Médico, PhD pela Universidade de Liverpool, é Secretário de Saúde do Recife.

Publicado em: 07/02/2019 03:00 Atualizado em: 07/02/2019 08:36

Nas primeiras horas daquela manhã de janeiro de 2003, a cidade de Awassa (hoje Hawassa), ainda estava fria. Sob um caramanchão repleto de flores de hibisco vermelho, eu apreciava um bom e quente latte macchiato enquanto ouvia o resumo das notícias na rádio BBC World Service. Foi quando Tafari, o recepcionista do Hotel Lewi, se aproximou e me disse: “Dr. Correia, tem um senhor lá fora à sua espera. Ele quer muito falar com o brasileiro hospedado aqui”. Tafari tinha nome de príncipe, era culto e lia Shakespeare em livros sem capa que chegavam por doação da Europa, mas naquela ocasião foi lacônico e deixou o mistério no ar.

Localizada à beira do lago homônimo, Awassa não estava acostumada à presença de brasileiros. Mas todos eram absolutamente vidrados no nosso futebol. Camisas canarinho eram vendidas nas feiras, retratos dos nossos heróis da bola habitavam os cartazes de propaganda nos bares e restaurantes. Daí minha primeira reação foi achar que o futebol seria o motivo daquela visita inesperada. Eu estava quase na hora de partir para o Hospital de Yirgalem, como fazia todos os dias, em busca de casos de meningite meningocócica para meu doutorado. Mas como ainda tinha alguns minutos - e muita curiosidade - pedi que o visitante sentasse à mesa.

Logo percebi que o distinto senhor era uma pessoa importante. Com desenvoltura, dr. Taddese se apresentou como médico sanitarista, com alto cargo no governo, sendo responsável pela promoção à saúde e prevenção de doenças, particularmente a infecção pelo HIV e Aids, em toda a Região das Nações, Nacionalidades e Povos do Sul da Etiópia. Quando ele disse que nunca havia estado no Brasil, mas que seu trabalho era fortemente influenciado por um brasileiro, fui tomado por um misto de orgulho pátrio e surpresa. Quem seria a autoridade de tamanho alcance, capaz de influenciar tanto numa terra tão distante?

Ainda passavam nos meus pensamentos sanitaristas de renome, mas diante do meu silêncio atônito e olhar perplexo, dr. Taddese me revelou, solenemente, com sotaque amárico: “Paulo Freire”. Pedi a Tafari para ligar para o Hospital de Yirgalem e avisar que iria atrasar minha visita. Pelo resto da manhã, ao sabor do café etíope, dr. Taddese então me ensinou que na sua região eram faladas mais de 60 línguas e dialetos e que as diversidades étnicas e culturais eram enormes. Havia cristãos ortodoxos, muçulmanos sunitas e muitas comunidades tribais. E que era muito complexo tratar de questões de saúde e mais ainda promover mudanças de comportamento, o que só podia acontecer através da educação. Aprendizagem significativa, mais precisamente. Empoderando as pessoas no processo. E foi assim que descobri que a pedagogia do oprimido ali era o principal instrumento no combate à Aids. E foi assim que eu, vindo do Recife, pude perceber o alcance global da obra de Paulo - recifense, brasileiro e cidadão do mundo - Freire.

Os comentários abaixo não representam a opinião do jornal Diario de Pernambuco; a responsabilidade é do autor da mensagem.