Acidentes com armas de fogo

Meraldo Zisman
Médico psicoterapeuta

Publicado em: 07/02/2019 03:00 Atualizado em: 07/02/2019 08:36

No dia 16 de janeiro passado o presidente Bolsonaro assinou decreto que flexibiliza a posse de armas. Segundo a mídia oficial afiançou: “O povo decidiu por comprar armas e munições e nós não podemos negar o que o povo quis”.

Vamos ao assunto sem implicações apaixonadas ou polarizadas. Inicio referindo-me ao economista Steven D. Levitt e ao jornalista Stephen J. Dubner, ambos apartados da ciência da economia convencional, que analisam o dia a dia e seus enigmas, partindo de como o mundo realmente funciona. Quando se trata de avaliar os riscos, as pessoas usam muito a imaginação, priorizando aqueles com um fator psicológico mais alto ou com maior cobertura dos meios de comunicação. Esses autores comparam o risco de uma criança se afogar numa piscina com o de ela morrer por acidente causado por arma de fogo. Na verdade, do ponto de vista estatístico, o número das que morrem afogadas é muito maior.

No entanto, comparar piscinas com armas de fogo é no mínimo esdrúxulo. Creio que a tirania do algoritmo esteja presente e dominante nas ciências ou pseudociências no contemporâneo pós-moderno ou líquido. Quem está diante de uma escolha deve lembrar-se de que a sabedoria humana é incompleta e por isso inexiste decisão sem riscos.

Para não sair da minha praia— a medicina— acredito que nenhum esculápio (médico honesto) pratique de fato a medicina sem ser probo.

Mas vamos aos acidentes. Esclareço logo os motivos que me fizeram passar de simples escrevinhador de receitas para cometer a arte das escreveduras. Explico ademais, por mais de meio século pratiquei a pediatria e as docências aos estudantes da medicina e diversas das profissões ditas “da saúde”.

Seria preferível e cômodo guardar para mim o que vi na minha vida profissional, o assistido ou ocorrido, como a morte, e deixar os mortos em paz e os vivos com suas ilusões.

Este artigo foi motivado pelo recebimento de mensagem da rede (WhatsApp) dizendo assim:

“Posse de arma em domicílio funciona assim” e exibe um carro entrando na garagem e o assaltante saindo do esconderijo, tomando o automóvel de duas moças (ou senhoras), — a imagem não está bem definida — quando surge um homem de dentro da casa com uma arma na mão e começa a atirar no assaltante, que naquele momento já estava na direção do carro que pretendia roubar, enquanto o fundo musical é interrompido, primeiro por disparos e em seguida pelo clique do gatilho da arma, já sem balas. O cidadão mata o ladrão.

Lembrei-me da minha prática de médico quando atendi crianças e jovens acidentados por revólveres nas suas residências. Ficou na minha mente o fato que relato: uma cliente minha, com cinco anos de idade, retirou do guarda-roupas dos pais e puxou o gatilho da pistola quando apontada para seu abdômen. Como era bala de baixo calibre, passeou por dentro do seu abdome perfurando vários órgãos; mesmo socorrida às pressas e assistida por experiente cirurgião infantil, faleceu na mesa operatória.

Eu teria alguns outros “causos” para contar… Bastaria citar os números de ocorrências por arma de fogo que atendi durante meu exercício da medicina para deixar o leitor horrorizado. Principalmente nos plantões de emergência.

Enquanto escrevia este relato meu Iphone não parava de avisar a chegada de novas mensagens com enredo semelhante, de acidentes ou de reações positivas com as armas de fogo estocadas nos domicílios.

Pensei. A vida não passa de uma narradora de primeira ordem.

Os homens de hoje ou de sempre perdem muito tempo a escutar o que os outros dizem, principalmente agora com esses aparelhinhos móveis. Uso que me faz lembrar o dito do jornalista Nelson Rodrigues: ¨toda unanimidade é burra”. Valeria recorrer às suas próprias opiniões e não às da maioria, caro leitor.

Advirto, acidentes são ocorrências inevitáveis devido à ação incontrolável das leis naturais. Mas nunca é bom provocá-los…

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