Madame Bovary e o Brasil, ou o "sistema de abusos cordiais"

Luiz Otavio Cavalcanti
Ex-secretário de Planejamento e Urbanismo da Prefeitura do Recife, ex-secretário da Fazenda de Pernambuco e ex-secretário de Planejamento de Pernambuco.

Publicado em: 18/01/2019 03:00 Atualizado em: 18/01/2019 08:35

A psicanalista Maria Rita Kehl acaba de publicar Bovarismo Brasileiro (Boitempo, 2018, São Paulo).

Como se sabe, Emma Bovary foi figura de um romance do escritor francês, Gustave Flaubert. Emma Bovary é uma mulher que passa a vida tentando tornar-se outra pessoa. Sua tentativa era a de mudar o destino medíocre de província. Por meio de aventuras amorosas. E se suicida.

A psicanalista faz projeção comparando a Bovary, como metáfora de projeto de vida, e a história de sociedades periféricas. Vide o Brasil. Ela lembra que Sérgio Buarque de Holanda considerou o bovarismo uma das condições que definem o sujeito moderno. Segundo Buarque, o bovarismo é um dos traços que compõem o conjunto das formações imaginárias que os brasileiros compartilhamos (Raízes do Brasil, Companhia das Letras, 1998, São Paulo, pg. 166).

Até que ponto o Brasil é capaz de se transformar socialmente, como nação? Até que limite o país atinge para cumprir o anseio contemporâneo de modernização política, como sociedade? Até que extremo o Brasil alcança para radicalizar o bovarismo como forma de mudança?

Para Maria Rita, “o bovarismo dos países periféricos não favoreceu sua modernização”. Pelo contrário, “sempre inibiu e obscureceu a busca de caminhos próprios, emancipatórios, capaz de resolver as contradições próprias de sua posição no cenário internacional”.

Mas, permanece a fantasia dos países menos desenvolvidos de “tornar-se um outro”. E recorda o estudo de Roberto Schwarz em Um Mestre na Periferia do Capitalismo (Duas Cidades, 2000, São Paulo). Para este, a desigualdade confirma “o arremedo tropical da sobrevivência dos mais fortes”.

Maria Rita acentua o que chama de farsa da modernização no Brasil oitocentista. No qual, o Segundo Reinado acomodou-se aos novos tempos sem grandes rupturas, sem promover mudanças sociais. Destacando que o país se tornou independente em 1822. E somente em 1888 aprovou uma lei libertando os escravos. Sem lhes conferir condições objetivas de educação e ocupação para sobreviver.

Nesse contexto, ressalto dois outros momentos da vida republicana. Nos quais iniciativas políticas frustraram-se politicamente: a Revolução de 30 e o governo Lula. Serão dois exemplos de bovarismo político?

A Revolução de 30 rompeu com o constitucionalismo propondo a modernização política do país. Desembocou na ditadura do Estado Novo em 1937. No qual, Getúlio aboliu a Federação, fechou jornais e prendeu sem autorização judicial.

É verdade que o legado administrativo de Vargas (1930/1945) é amplo. Criou o Ministério da Educação, aprovou a Consolidação das Leis do Trabalho – CLT e fixou mais segurança jurídica no processo eleitoral. Entre outras medidas modernizadoras.

Mas, Vargas tem uma face autoritária incontornável. Foram quinze anos de poder discricionário. Só revogado pelo veto dos generais Gois Monteiro e Eurico Dutra. É um exemplar de bovarismo político?

O governo Lula (2003/2006 e 2006/2010) trouxe dupla promessa ao eleitorado de país desigual e acostumado com corrupção. Os dois compromissos de Lula eram resgatar a ética política e garantir programa social que eliminasse da pobreza mais de vinte milhões de brasileiros.

A proposta de resgatar a ética na política naufragou em formidável esquema de corrupção. Envolvendo a compra de parlamentares na prática do chamado mensalão. E, num segundo momento, abrangendo consórcio de corruptores que associou a Odebrecht, outras empreiteiras e altos funcionários do governo. Atingindo a gestão na Petrobras.

Por sua vez, o compromisso de tirar da pobreza uma parcela importante do povo brasileiro não se consolidou. Porque a âncora econômica, usada para tal fim, apoiou-se em mecanismo frágil de incentivo ao consumo por meio de aumento do crédito pessoal. Sem alterar as condições estruturais de oferta qualitativa de educação e saúde. O Bolsa Família transformou-se, em parte, em ferramenta de clientelismo político.  

As frustrantes experiências nos campos da ética e da eliminação da pobreza, no governo Lula, configuram exemplo de bovarismo político?

Para Schwarz, há uma inconsciência de práticas atrasadas, que descobrem a volubilidade das elites brasileiras. Para Maria Rita Kehl, essas elites sempre conseguiram se arranjar para evitar rupturas radicais. E acabar com privilégios. Continua a prevalecer o “sistema de abusos cordiais”.

Agora, o Brasil fez uma opção inédita. Assumiu a política da direita. Por diferença de mais de dez milhões de votos. A maioria do eleitorado deixou de ser esquerdista? Ou o bovarismo político brasileiro explica o desencanto eleitoral com o Lulismo? O bolsonarismo é um tipo de bovarismo?

Maria Rita escreve que o bovarismo, sem recuar na empreitada, expõe criticamente o ridículo de suas pretensões. Tenho dúvida. Não há ridículo mesmo no autoengano. O que há é a tentativa, repetida, de os oprimidos se distanciarem de seus opressores. Inclusive, pela direita.

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