Democracia Ferida

Maurício Rands
Advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxford

Publicado em: 01/01/2019 09:00 Atualizado em:

Uma marca de 2018 mundo afora foi a deterioração dos valores democráticos e do respeito aos direitos humanos. Nos EUA, o presidente Trump continuou se  superando. Como realçou o Nobel Paul Krugman no NYT do dia 28 p.p, a marca dele tem sido a mentira, a arrogância, a insistência em culpar os outros, o desrespeito aos ritos da democracia e a ignorância sobre os complexos temas em que deve interferir. Tudo isso cria problemas internos. E ameaça a economia e a própria ordem internacional. Com repercussões negativas para todos nós. Mas os sinais de deterioração democrática vêm até mesmo da velha England. Onde a Constituição não-escrita é um complexo de normas, convenções e costumes. Que envolvem a noção de que os agentes públicos devem saber os limites das normas não escritas para nunca ultrapassá-los. No dizer do historiador Peter Hennessy, a constituição britânica é um estado de espírito que exige um senso de auto-restrição. Pois até mesmo esta noção, que lá tem viabilizado o funcionamento das instituições, está sendo ultrapassada na recente crise do Brexit. A luta pelo poder, tanto no interior dos partidos quanto entre eles, tem desfigurado essas normas de conduta política. Acordos políticos têm sido descumpridos, ministros têm faltado com a verdade em depoimentos ao Parlamento. O ascenso do populismo nacionalista xenófobo não significa menor ameaça à democracia. Nem a Alemanha de Angela Merkel tem escapado. Diante do crescimento da participação da extrema-direita no Parlamento, ela, que tem sido um baluarte em defesa dos valores democráticos do mundo ocidental, foi forçada a anunciar sua retirada em futuro próximo. Autocratas torcem as regras eleitorais na Rússia, na Hungria, na Polônia, na Turquia. Nossa sofrida América Latina segue imersa na pobreza e na exclusão. Mesmo depois de um ciclo em que governos populares e/ou populistas não conseguiram destravar o desenvolvimento e superar a pobreza endêmica. Não sem antes culpar os outros. As elites ou a crise econômica mundial. Sem a mínima disposição para a autocrítica e para o estudo. Incapazes de aprofundar suas análises muitas vezes pouco informadas e superficiais. Quando não degenerando para a ditadura como foram os tristes casos da Venezuela de Maduro e da Nicarágua de Ortega. Ditaduras que recebem o tratamento complacente de importantes setores da esquerda brasileira. No Brasil, a polarização vai se acentuando e minando alicerces necessários para a consolidação de uma cultura democrática. O presidente eleito e parte do Congresso passaram a campanha atacando direitos humanos que são pressupostos para a democracia. Nossa imagem no exterior hoje mistura populismo (de direita ou de esquerda), violência, corrupção e pobreza. Combinação que nos arrisca a descer alguns degraus numa escalada de irrelevância ante um mundo que se volta para o Pacífico e a Ásia. Os fingimentos de Neymar, o ídolo de Galvão Bueno, são apenas uma pequena amostra da enfermidade que toma conta da nação. Sua obstinação em burlar as regras e tentar enganar os árbitros talvez tenha deteriorado mais a nossa imagem do que o segundo vexame consecutivo na Copa do Mundo.

O ano que se encerra também testemunhou um desdobramento menos sutil que ameaça as nossas liberdades. Foi em 2018 que ficou mais clara a ameaça à democracia que vem do controle absoluto dos dados sobre as pessoas por parte de gigantes como Google, Facebook, Amazon e Alibaba. Que hoje controlam dados que lhes entregamos sem pensar nas consequências. Basta ver os vazamentos como os recentes que envolveram Facebook, Google, Marriot, Delta e Best Buy. Já está evidente que o mundo vai precisar de novas regras sobre privacidade, proteção de dados e uso dos algoritmos, como reconhece a insuspeita de intervencionismo ‘The Economist’ (22/11).

Esperemos que o próximo ano possa reter nossa atenção individual e coletiva para esses problemas. Para isso, precisamos desenvolver uma inusitada capacidade de entendimento entre diferentes atores e suas distintas agendas. Para que nos entendamos, vamos precisar dialogar. Só assim viabilizaremos compromissos necessários para reverter esses sinais de deterioração. Teremos que nos reinventar e, fazendo-o, reinventar a arena pública e a democracia.

Os comentários abaixo não representam a opinião do jornal Diario de Pernambuco; a responsabilidade é do autor da mensagem.