Antes da primeira instância

Edson Holanda
Advogado do Holanda Advogados

Publicado em: 21/12/2018 03:00 Atualizado em: 21/12/2018 08:26

Em movimento pendular sobre o maniqueísmo, os efeitos da crise da representação política que o Brasil vivencia têm produzido, entre outras consequências, um olhar mais descrente em torno da competência dos gestores públicos. Uma delas é a condenação antecipada de gestos políticos que tendem a ganhar, à primeira vista, texturas de escândalo. E como diz o filósofo Jules Poincaré, toda generalização é uma hipótese.

Um exemplo recente: a sentença opinativa diante da aprovação do projeto que flexibiliza a Lei de Responsabilidade Fiscal, permitindo que os municípios que tiverem queda de arrecadação de 10% (por razões específicas, pontuadas a seguir) possam extrapolar o limite de 60% das receitas para gastos com a folha salarial. O texto, aprovado na Câmara dos Deputados e que segue para a sanção presidencial, prevê essa possibilidade se o declínio for causado por redução de repasses do Fundo de Participação dos Municípios (FMP) ou royalties e participações especiais. Ou seja, por fatores alheios à qualidade da administração do município.

É indiscutível que o projeto de lei em questão não obteve um debate amplo, como merecia, nem uma Avaliação de Impacto Legislativo mais aprofundada (AIL). Mas diante de um desconhecimento da realidade vivida e das responsabilidades imputadas aos municípios brasileiros atualmente, é prematuro reduzir o gesto a um patife, como um mero sinal verde para que as prefeituras estourem o seu limite de gastos. Atualmente, parte significativa das despesas dos municípios pequenos e médios está justamente na folha de pagamento. Muitas, inclusive, abarcam os serviços prestados pelos professores que, por sua vez, méritos e importância, obtiveram um aumento da União em um efeito cascata que chegou aos caixas das prefeituras.

Adicione à equação o fato de que o Fundo de Participação dos Municípios tem o montante sujeito a benefícios concedidos pelo Governo Federal, como IPI e IR, que geram forte impacto na receita das cidades em questão. Em outras palavras, a União renuncia uma receita que ao cabo e ao fim não é 100% sua, mas dos estados e municípios também. Já os royalties, por força de lei, não podem ser destinados para pagar despesas com pessoal. O projeto em debate nos dá a oportunidade para uma discussão profunda sobre as engrenagens da relação entre os entes da federação - leia-se União, Estados e Municípios - em razão da crise fiscal que devasta as contas públicas. O artigo 1º da Constituição logo estabelece que a República é formada pela união indissolúvel entre seus entes federativos, e que juntos devem atuar em prol do desenvolvimento nacional (artigo 3°, II), com competências comuns relevantes: políticas de saúde, acesso à educação, proteção do meio ambiente e do patrimônio público, saneamento básico e que tais.

Com o crescimento das obrigações dos municípios, em contraponto à queda de receita e a concentração de verbas na União, esse caráter cooperativo se torna um importante vetor de regência de nossas relações federativas. Mas ainda que se reconheça o papel central e de coordenação por parte do Palácio do Planalto, ele não pode servir de pretexto para ações predatórias em franco desfavor dos outros entes, que em busca de uma sobrevivência fiscal recorrem à medidas que geram intepretações obtusas. O debate é mais profundo, e é preciso imergir antes de condenar ao sabor das emoções.

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