Democracias que degeneram em autocracias

Maurício Rands
* Advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxford

Publicado em: 17/12/2018 03:00 Atualizado em:

O livro de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt (How Democracies Die, New York: Crown, 2018) traz um alerta sobre os riscos à democracia mesmo em países em que ela é dada como um fato consumado. Eles lembram que desde a 2 a Guerra alguns governantes eleitos sob regras do jogo democrático acabaram por ameaçar a democracia. Em alguns casos, chegaram a fazê-la degenerar em autocracias. Da Alemanha de Hitler até os casos da Venezuela (Chaves e Maduro), Nicarágua (Ortega), Peru (Fujimori), Turquia (Erdogan), Hungria (Viktor Orbán) e Rússia (Putin). Esses autocratas usam estratégias similares para subverter as instituições democráticas. Destoando do tradicional golpe de estado, conseguem erodir gradualmente as regras do jogo democrático. Delas fazendo uso. É o que ocorre quando eles reformatam os órgãos do Judiciário e manipulam sua composição, reformam as instituições para capturá-las, modificam as regras do jogo em seu favor, criam mecanismos para controlar a imprensa e os adversários, ou enveredam pela prática da mentira na campanha e na condução do governo.
A obra inscreve-se na fértil tradição teórica que realça a importância dos procedimentos para a democracia. Que vem de Schumpeter e Robert Dahl. Para quem a dificuldade de acordo sobre a substância do ideal democrático sugere que o exame objetivo dos procedimentos poderia avançar algum consenso sobre o que seria uma sociedade democrática. Regras que garantam o reconhecimento do oponente, a liberdade de crítica, o direito de organização política, a alternância de poder. Ao mesmo tempo, Levitsky e Ziblatt reforçam a importância da cultura política. Ainda que para fortalecer princípios procedimentais. Por isso, ao analisar a intensa polarização da política atual dos EUA, com potenciais ameaças à sua longa tradição democrática, eles falam de duas regras não escritas na Constituição de 1787. Sem as quais os princípios constitucionais americanos não funcionam. A saber, a mútua tolerância em relação aos adversários e a autorrestrição no exercício de direitos e prerrogativas (institutional forbearance). Vê-se que ambas se inscrevem no campo da cultura política. Materializam certos valores que devem permear os procedimentos da disputa política e do funcionamento das instituições. Lembram que a polarização da sociedade americana vem se agravando desde os anos 90, com o GOPAC de Newt Gingrich, e o Tea Party. Movimentos que enfraqueceram o establishment daquele partido, que tradicionalmente atuava como guardião ou força de contenção dos impulsos antidemocráticos de setores de sua base. Eles citam exemplos de quebra das duas regras de ouro não escritas. Sobretudo depois que a candidatura extremista de Trump se impôs ao partido e à nação. Da ameaça de prisão da sua adversária Hilary Clinton, passando pelo ataque às minorias, à CNN, ao Washington Post e ao New York Times. E chegando à ameaça de paralisação da administração federal caso os democratas não aprovem a construção de um muro na fronteira com o México.
A partir das reflexões do cientista político Juan Linz, da Universidade de Yale, eles propõem alguns critérios de conduta que funcionariam como sinais de alerta a identificar um potencial autocrata: i) rejeição, por ações ou palavras, das regras do jogo democrático; ii) negação da legitimidade dos oponentes; iii) tolerância ou encorajamento da violência; e, iv) inclinação a restringir as liberdades civis dos oponentes, inclusive da mídia. Critérios que também podem ser úteis em outros países e conjunturas. Levitsky e Ziblatt concluem essa monumental contribuição à teoria democrática com algumas recomendações práticas para que as sociedades não degenerem em autocracias ou delas se recuperem. Todas na direção do combate à desigualdade e à falta de oportunidades, bem como da construção de alianças entre setores com interesses diferentes mas que podem compartilhar valores, princípios e procedimentos democráticos.

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