Natureza, ciência e poesia

Cristiano Ramalho
Cientista social, professor e pesquisador do Departamento de Sociologia/UFPE

Publicado em: 01/12/2018 03:00 Atualizado em: 02/12/2018 16:23

O que me aproximou dos textos da norte-americana Rachel Carson (nascida em 27/5/1907 e falecida em 14/4/1964) não foi o seu impressionante Primavera silenciosa, de 1962, cujo impacto acadêmico, político e social a tornou um marco do ambientalismo e uma das cientistas mais prestigiadas do século 20. Mas uma paixão comum: o mar. Mar que foi seu objeto predileto de reflexão e sobre o qual escreveu três monumentais obras, a saber, Sob o mar-vento, de 1941, O mar que nos cerca, de 1951, e Beira-mar, de 1955.

Esses livros tomaram-me de fascínio, devido ao estilo romanceado, claro e profundo, exemplificando que rigor científico não se apartava da narrativa literária, aliás, esses universos imbricavam-se de tal forma - numa comunicação permanente - que era impossível separá-los, tê-los como entes caminhantes de trilhas opostas. E foi justamente aí que habitou a sua originalidade, que transbordou a sua densidade enquanto cientista, que se avivaram suas ideias e conceitos capazes de serem compreendidos por acadêmicos (não apenas da biologia marinha – sua área de conhecimento) e não acadêmicos. Em Carson a linguagem da ciência não foi refém de um mundo inacessível para aqueles(as) que estavam fora das universidades, dos centros de pesquisa, pois deveria chegar a todos(as), ser inteligível, o que não significou forjar uma escrita superficial, simplista.

Para tanto, a estratégia utilizada foi fazer da argumentação científica uma ação poética. Sob esse princípio, o mundo de suas pesquisas assentou-se em sólidas bases acadêmicas para melhor voar em poesia explicativa. Seu método de exposição tingiu-se de influências da literatura romântica, o que a levou a compreender a natureza como projeção do estado do espírito vinculado a um eu lírico; e isso se fez em comunhão com a objetividade acadêmica. O essencial era revelar, segundo Carson, que, na natureza, tudo se conecta, “uma criatura é ligada a outra, e cada uma delas ao meio circundante” em permanente movimento, interação, inclusive o ser humano.

Seu talento fez com que processos naturais ganhassem metáforas para que ela discutisse as dinâmicas ambientais e suas interdependências nos oceanos, na beira-mar, nas regiões costeiras. Então, nos livros citados, a migração de pássaros surge como “um grande rio de aves que corria pelo céu”; ou que, no inverno, frutas litorâneas “vestiam reluzentes camisas de gelo”; o grão de areia da praia seria “produto final do trabalho das ondas, o diminuto e rígido núcleo mineral que permanece anos após anos de moagem e polimento”; já “o outono chega ao mar com um suave brilho de fosforescência, numa época em que todas as cristas das ondas parecem estar em chamas. Aqui e ali, toda a superfície pode mover-se com lençóis de fogo frio, enquanto multidões de peixes deslizam céleres um pouco abaixo, como metal líquido através das águas”; e que, no ciclo de vida das espécies marinhas, “as velhas morreriam, convertendo-se novamente em mar” ou “na reencarnação que domina o mar, na qual uma espécie é predada por outra”, ela se torna “o corpo de seu inimigo”, fazendo-se vida.

Em Rachel Carson natureza, ciência e poesia compõem uma única sinfonia de palavras, imagens, sons, sentimentos e compromissos socioambientais. Sua força científica apoia-se na sua leveza poética para melhor explicar a natureza, a sua grandeza e fazer com que o ser humano compreenda-se como parte da comunidade da vida (orgânica e inorgânica) existente no planeta.

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