1918 - 2018: a França de luto

Patrick Howlett-Martin
Ex-cônsul-geral da França no Recife

Publicado em: 10/11/2018 09:00 Atualizado em:

A França comemora, neste 11 de novembro de 2018, o centenário do Armistício, a vitória das tropas francesas e de seus aliados (inclusive soldados forçados oriundos de suas colônias africanas e asiáticas) da Primeira Guerra Mundial.

Desencadeada a propósito de um conflito diplomático secundário, generalizada pelo sistema rígido das alianças, tornou-se hiperbólica pelo recrutamento dos civis e pelos recursos industriais, a guerra de 1914-1918 foi à origem de uma gigantesca chacina: 9 milhões de mortos, 6 milhões de inválidos, 3 milhões de viúvas, 6 milhões de órfãos. Inclusive 100 mil soldados africanos mortos, oriundos das colônias africanas, recrutados por requisição e contra a promessa falsa de uma cidadania francesa uma vez pago o “imposto de sangue” segundo a expressão usada pelo responsável desse recrutamento no continente africano, Blaise Diagne. Guerra fratricida: uns lutando ao lado da França, da Inglaterra, da Bélgica, do Portugal, outros, ao lado da Alemanha, dependendo da loteria colonial. Não existe nenhum vilarejo na França e na Alemanha, por menor que seja, que não tenha na sua praça central um monumento honrando e nomeando um a um seus cidadãos mortos ou desaparecidos durante esse conflito mundial. Mas só a cidade de Reims tem, na França, um memorial dedicada aos mortos das Tropas negras, “l’Armée Noire”: Zouaves, Chasseurs d’Afrique, Tirailleurs Sénégalais, Spahis.... A grande mesquita de Paris foi construída em homenagem aos 68.000 norte-africanos (argelinos, marroquinos, tunisinos) mortos durante essa guerra, mas tivemos que esperar o ano 2006 para que um memorial militar em homenagem as vítimas muçulmanas fosse inaugurado no forte de Douaumont. Na Alemanha, só ingratidão e menosprezo para os ex-combatentes oriundos das suas colônias africanas (Tanzânia, Namíbia, Camarões, Togo), qualificados de “Vergonha Negra”, Die schwarze Schmach.

Alain-Fournier, Charles Péguy, Guillaume Apollinaire, August Macke, Ernest Psichari, Wilfred Owen, Isaac Rosenberg..., quantos escritores, quantos poetas sacrificados sobre o altar do Absurdo que os governos e as instituições militares transfiguram como “campo de honra”, le champs d’honneur. A antologia dos autores franceses mortos nessa guerra, publicado em 5 volumes em 1924 por Edgar Malfere, lista mais de 800 autores.....Ezra Pound, Ernest Jünger, Louis-Ferdinand Céline, Otto Dix, Siegfried Sassoon, George Grosz, Edmund Blunden, Henri Barbusse, Erich Maria Remarque, Roland Dorgelès, Ernst Ludwig Kirchner, Fernando Pessoa, Cristiano Cruz.....quantos artistas sobreviventes marcados para sempre pelo ferro do horror? José Rodrigues dos Santos escreveu no seu romance A Filha do Capitão: “Descobri que o mais duro não é fazer a guerra, o mais difícil é sobreviver a ela.”

O traumatismo ético e moral que se espalhou pela Europa e da qual testemunha uma literatura da incerteza e do desespero lembra aos beligerantes que os benefícios da vitória são irrisórios comparados à traição inevitável dos valores causada pela brutalidade dos combates e pelo descaso ao ser humano dentro do combatente.

A ordem moral e política foi abalada pela luta inexorável e pelo enfraquecimento das nações que pretendiam servir de modelos para suas colônias da Ásia e da África. Paul Valéry escreveu em 1919 no seu livro A Crise do Espírito: “Nós civilizações, sabemos, agora, que somos mortais”.

Qual a razão das nações européias se lançarem em 1914 numa guerra de hegemonia? A questão foi apaixonadamente discutida porque, pela primeira vez talvez na história, os beligerantes tiveram o sentimento que a guerra em si era absurda, ruinosa para sua civilização comum, desmedida, devorante, alimentando-se do seu próprio furor, cada vez mais ignorante de suas intenções e dos seus objetivos no transcurso do seu desenvolvimento.

Em agosto de 1914, ricas, poderosas, estas nações se engajaram no meio de um entusiasmo popular, excitado, inflamado pelo nacionalismo irresponsável dos seus governantes, numa guerra que representou, na verdade, a traição da pátria, a entrega ao extermínio industrial da nata das populações.

“Usinas para fabricar cadáveres” segundo a expressão de Hannah Arendt numa carta a Karl Jaspers. Depois da batalha de Ypres, na Bélgica, em abril de 1915, os gases e os ataques químicos fizeram mais de 100.000 mortos. Em seis dias na batalha de Verdun, na França, em 1916, morreram 25.000 soldados franceses e 27.000 soldados alemães sem que nenhum dos dois lados avançasse um centímetro sequer. Em um só dia, 1ero de julho de 1916, morreram 21.000 soldados ingleses nas margens do rio Somme. No Chemin des Dames, no mês de abril de 1917, l´”Armée Noire” perdeu no espaço de 4 dias o quinto dos seus efetivos. Em Abril de 1918, em apenas 4 horas de batalha, 7.500 soldados portugueses foram mortos, na batalha de la Lys, na região das Flandres, entre os vilarejos de Armentières e La Bassée.

Essa impostura patriótica carregava uma ideologia tão perniciosa quanto o racismo, o colonialismo e o imperialismo e levava ao conceito nocivo de superioridade nacional. Quem discordava desse patriotismo belicoso era considerado traidor ou comunista e era preso (Paul Vaillant-Couturier na França, Bertrand Russel no Reino Unido, Eugène Debs nos Estados Unidos),  assassinado (Rosa Luxemburg, Karl Liebknecht na Alemanha; Jean Jaurés, líder político francês,) ou fuzilado “pour l’exemple”, para servir de lição. Estima-se em 600 o número de jovens soldados, por terem questionado o sentido dessa carnificina, que foram condenados a morte na França no decorrer do conflito, 750 na Itália, 306 no Reino Unido. O único país que se recusou a fuzilar seus soldados sediciosos foi a Austrália. Portugal teve um ‘único caso, o soldado João de Almeida, natural de Porto, fuzilado em 16 de setembro de 1917.

A famosa canção de Craonne (La chanson de Craonne), composição anti-militarista escrita em 1917 e cantada pelos soldados amotinados - que só queriam defender e não más atacar - nas 60 das 100 divisões do exército francês, era o símbolo desse desespero, severamente reprimido pelas autoridades militares que chegaram a oferecer um prêmio pela cabeça do “criminoso” autor, até hoje, desconhecido:

Adieu la vie, adieu l’amour                         
(Adeus à vida, adeus ao amor)
Adieu toutes les femmes
(Adeus a todas as mulheres)
C’est bien fini, c’est pour toujours
(Essa guerra infâme)
De cette guerre infâme
(Se acabou para sempre)
C’est à Craonne sur le plateau
(Na planura de Croanne)
Qu’on doit laisser sa peau
(Deixarei a minha pele)
Car nous sommes tous des condamnés
(Todos nós somos condenados)
Nous sommes les sacrifiés.
(Todos nós somos sacrificados).

O protesto desses soldados foi retratado em vários filmes como Uomini Contra (traduzido em portugues como A vontade de Um General) de Francesco Rosi (1970), King and Country (Pelo Rey e Pela Pátria) de Joseph Losey (1964), Paths of Glory (Glória Feita de Sangue) de Stanley Kubrick (1957) que só seria exibido na França 18 anos após sua estreia.
Depois de se confrontarem, mais uma vez, num sangrento conflito (1939-1945), provocando 45 milhões de mortos, entre os quais 20 milhões de soldados soviéticos, uma hecatombe da qual se salvou em parte a França colaboracionista, elas vivem, hoje, apaziguadas e aparentemente reconciliadas dentro da União Europeia, um espaço de construção frágil, homenageada pela Academia Sueca com o Prêmio Nobel da Paz, um conjunto ainda heterogêneo cuja estabilidade e perenidade repousam sobre a união das duas ex-beligerantes, a França e a Alemanha, nações de gerações novas más que se encontram envolvidas no Meio-Oriente, na Europa e em África em outros conflitos, tão absurdos e inúteis como aquele vivido pelos seus antepassados, antepassados que, na realidade, eram jovens recrutas de 18 anos, os quais, a França, reconhecida e compadecida, presta neste 11 de Novembro  uma homenagem amarga e dolorosa.

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