Infância

Tiago Carneiro Lima
Advogado, sócio de Lima & Falcão Advogados

Publicado em: 07/11/2018 03:00 Atualizado em: 07/11/2018 09:28

Muitos anos atrás, decidi assistir novamente The Sound of Music (Noviça Rebelde). Canções dos gigantes Richard Rodgers e Oscar Hammerstein II. Por essa época, meus filhos passavam alguns dias na minha casa – filhos de pais separados, claro.

Chegou o primeiro deles, o segundo... Um a um, perguntavam-me que filme era aquele e se acomodavam na sala. Lembro-me das bolsas enormes, das fardas sujas, do cheiro inesquecível de suor que deixava a infância rumo à adolescência. Já passara a hora de simplesmente mandá-los tomar banho, jantar e dormir...

Dia de semana, pipoca nas mãos, olhos pregados na tela da TV. Climb ev’ry mountain, Endelweiss, e tantas outras músicas que me faziam voltar à minha própria infância.

O filme avançava. O silêncio da pequena plateia me fazia lembrar do meu pai, do meu pai segurando a minha mão, na porta do antigo cinema “Babilônia” ou “Capitólio” – não sei ao certo, na minha Campina Grande, quando eu vira o filme pela primeira vez.

Uma infância minimamente feliz, confortável, de grandes e pequenas mãos. Infância de professores austeros e, com o passar dos tempos, inesquecíveis.

O cheiro das bancas de madeira, quantidade enorme de terra nos sapatos. Suor cheirando a felicidade. A saudade de uma infância de segurança e bem alimentada. Apenas um pouquinho de muita coisa, de coisas que nos ajudam a lutar pela vida afora. A opção que nos é dada, ainda na idade tenra, de sermos decentes, de não nos curvamos a regimes totalitários, de não nos deixarmos vencer pelas dificuldades da vida e de sabermo-nos portar à frente do mundo vindouro, nessa luta por um lugar ao sol e por um país justo.

No filme, o Capitão Von Trap resistindo ao nazismo, a futilidade insegura da noiva do capitão, e a aparição do “anjo rebelde”, que chegava àquela casa inundando-a de ternura, de coisinhas básicas que toda criança deste nosso país deveria provar, sentir, possuir. Algo como tomar um sorvete num parque e voltar para uma casa com comida, lençóis limpos e sopa quente na mesa.

Uma infância minimamente feliz é dever do Estado, enquanto nação.

Em Anos de Ternura, Charles Dickens conta-nos a história de um avô, anjo na vida de uma criança. Provedor de ternura, cuidados, palavras e atitudes capazes de propiciar àquele personagem do livro uma integridade moral imensurável e de abrir-lhe as portas da esperança para um futuro também minimamente feliz.

A bondade contagia. Sempre contagia. Nunca é demais falar disso.

Em seus romances, Dickens lutou, até o fim, pela erradicação do trabalho infantil nas minas de carvão do então Império Inglês. Uma dose de “humanidade” na humanidade. Nas entrelinhas de sua obra, sempre havia um enigmático anjo na vida de alguém.

A vida passou, meus meninos cresceram. Num dia qualquer, café da manhã, alguém sentou na cadeira de sempre. Estava visivelmente tocada. Contou-me que iniciara visitas a instituições de tratamento de saúde mental, e relatou-me, pormenorizadamente, o que vira. E, com o olhar perdido nos próprios pensamentos, disse-me que “ainda bem que havia uma espécie de anjo em cada hospital que inspecionara”.

Anjos... Eles existem? Ou também somos nós, quando nos dispomos a mudar o mundo que nos rodeia?

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