O Dia de Finados relembra a banalização da vida

Bartyra Soares
Membro da Academia Pernambucana de Letras

Publicado em: 31/10/2018 03:00 Atualizado em: 31/10/2018 09:03

Atualmente o Dia de Finados possui relatos muito diferentes dos ouvidos no passado e não se trata de um tempo remoto. Contam-se nos dedos algumas décadas com o agravamento de alguns anos para cá.

Já não se sabe se os finados precisam de um dia específico no calendário, quando a passos largos a morte com frequência interrompe a vida, quando todos os dias estão reservados à afirmação da violência, das atrocidades, dos velórios improvisados. Agora, quase sempre, só existe espaço para a perplexidade ante mãos cruzadas sobre o peito, enquanto o desespero acompanha angustiantes soluços, retalhadas vozes pelas dores daqueles que veem de chofre partir seus entes queridos.

Salvo exceções, as pessoas faleciam por morte natural. Avós e pais morriam porque a hora era chegada e filhos e netos no dia 2 de novembro, iam aos cemitérios com flores, velas, orações trazidas do fundo da memória e lembranças para reverenciá-los.

Nos dias atuais, porém, como viver com serenidade se é negado a um sem número de seres humanos o direito de partir pelo fato de haver chegado o seu momento? Milhares de pessoas saem da vida repentinamente. Houve um estampido, um incidente insignificante, um assalto, uma desavença contornável, mas inexplicavelmente incontornada. Houve o esvair-se do sangue, das esperanças e eis o cerrar da cortina para o prosseguir da existência de alguém.

Amiúde, agora, os finados são vítimas de assassinatos. São corpos de crianças, jovens, adultos e idosos surrupiados da vida por balas perdidas, balas “achadas” e armas brancas. Vidas que não tiveram tempo de concretizar seus sonhos, seus desejos, seus planos.

Viver, independentemente da idade, é recolher nas mãos a plenitude de cada dia que surge, de cada noite que chega. Mario Quintana tinha conhecimento disso ao assegurar: “Pois só as crianças e os velhos conhecem a volúpia de viver dia a dia / hora a hora...” E João Cabral de Mello Neto definiu que em qualquer circunstância vale a pena estar nesse mundo: “E não há melhor resposta / que o espetáculo da vida (...) mesmo quando é a explosão / de uma vida severina”.

Vida severina ou não, tem-se o agravante, se é que se pode falar em agravante nas questões da morte provocada, muitos dos falecidos vão se acumular sem identificação em lugares ermos, em cemitérios clandestinos, em águas profundas, em abismos insondáveis. Muitos nunca mais encontrados, como se revivessem os episódios da fumaça se escoando pelas chaminés dos campos de extermínio.

Mas, os meliantes, indiferentes a tudo, associados aos seus comparsas, vão marcando sem interrupção na ampulheta do tempo o fim da existência de quem tanto ainda teria o que realizar.

Enquanto isso, nos cemitérios, no Dia de Finados, uma multidão de perdidos vagueia à procura das covas dos seus “afetos”, os rostos anuviados, a dor refletindvo o grito calado que denuncia o espanto pela banalização da vida. Até que se retiram e, no ano seguinte, se vivos estiverem, retornam àqueles locais ainda carregando nos ombros o peso da frustração e da saudade.

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