São Paulo VI

José Luiz Delgado
Professor de Direito da UFPE

Publicado em: 24/10/2018 03:00 Atualizado em: 24/10/2018 10:11

Desde a trágica (do seu ponto de vista) época da Renascença, em que muitos papas levaram vida nada edificante, a Igreja praticamente não vinha canonizando nenhum de seus pontífices. Foram somente dois, ao longo de quase 400 anos: São Pio V (papa de 1566 a 1572) e São Pio X (1903 a 1914). (Não significa que muitos papas desses séculos não sejam santos e não estejam à direita de Deus: apenas não foram declarados canonizados solenemente, não são “santos de altar”). Nas últimas décadas esse quadro se inverteu: três dos últimos pontífices foram canonizados – João XXIII, João Paulo II, e agora, Paulo VI. Parece procedente a máxima, enunciada por vários autores, segundo a qual quando a cristandade era vigorosa, Deus permitia papas fracos; quando a cristandade é fraca, Deus somente escolhe papas magníficos.

Grande é a alegria de saber que Paulo VI é santo! Ele não é apenas o papa da renovação conciliar. É também o papa que conseguiu levar a bom termo o Concílio, façanha em que talvez João XXIII, que o convocou, teria fracassado. Notáveis são os caminhos de Deus: é muito possível que, se tivesse sucedido a Pio XII (de quem fora um dos dois auxiliares mais próximos e mais dedicados), Montini não teria convocado o Concílio que tanta renovação promoveu na Igreja, tanto arejamento, tanto aggiornamento.  Mas João XXIII, que fez de Montini o primeiro dos cardeais que nomeou e que dizia só estar ali, na cátedra de Pedro, porque Montini ainda não era cardeal, ficou muito angustiado com os rumos da primeira sessão do Concílio, a única a que presidiu. Eleito seu sucessor, a competência, o equilíbrio, a moderação de Montini, seu exemplar empenho pela renovação da Igreja mas renovação dentro da tradição, conseguiram superar as divisões e elaborar os muitos documentos – constituições, decretos, declarações – pelos quais as três seguintes sessões do Concílio, em votações de impressionantes maiorias, quase inteiramente consensuais, reanimaram a Igreja.

Papa da renovação conciliar? Ainda mais notável, Paulo VI é sobretudo o mártir do Concílio, aquele que enfrentou a hora do demônio que, segundo dizem, acompanha todos os Concílios. Foi o que sofreu as confusões da imensa e terrível crise pós-conciliar. Não sei de Papa que, nos últimos cem anos, tenha sofrido tanto quanto ele. Verdadeiro mártir da Igreja, ele foi também o Papa da lucidez e da nitidez: ninguém, nenhum escritor religioso, nenhum teólogo, nenhum estudioso das coisas da Igreja, identificou, descreveu e denunciou a contestação melhor do que ele. Nos seus discursos, nas suas alocuções, encontra-se a refutação completa das confusões que perturbaram a vida da Igreja pós-conciliar, a ponto de levá-lo àquelas tremendas afirmações de que “a fumaça de Satanás penetrou na Igreja” ou de que se assistia a uma “autodemolição da Igreja”, uma “rebelião de clérigos”...  Pode não ter tido a força de punir e disciplinar os contestadores – talvez temesse um novo cisma, e ele, empenhado no ecumenismo, bem sabia quanto custava tentar recompor a unidade perdida. Mas deixou documentos luminosos, a começar pelo notável “Credo do Povo de Deus”, pelo qual reafirmou e renovou a fé cristã secular, rejeitando as inovações e as deformações que os novidadeiros queriam introduzir. 

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