A violência do processo penal e o sentar-se no banco dos réus

Maria Carolina de Melo Amorim
Doutora em Direito Processual penal na PUC/SP. Advogada sócia do Escritório Rigueira, Amorim, Caribé, Caúla e Leitão - Advocacia Criminal

Publicado em: 19/10/2018 03:00 Atualizado em:

“Deus não permita que eu assista minha condenação”. Era com essas palavras que Lourdinha (nome fictício) evocava sua sentença perante Deus. Processada criminalmente, a funcionária pública que, à unanimidade de seus colegas, sempre pautou sua vida pela ética, se viu emocionalmente abalada com a insurgência de um processo criminal contra si, instaurado há alguns anos perante a Justiça Federal de Pernambuco. 
Chorava copiosamente não apenas nas audiências, mas também nas reuniões no escritório de advocacia e sempre que alguém mencionava a existência do processo criminal, visto por ela como uma espada prestes a lhe decepar o pescoço. As acusações a acompanhavam em todos os momentos da sua vida, impedindo quaisquer situações corriqueiras de felicidade familiar. Já não era a mesma pessoa alegre e risonha de antes, disseram-me as testemunhas arroladas no processo e seus familiares.  
Mas sua preocupação não era o medo de punição ou da demissão do emprego público, mas de passar pelo constrangimento de ostentar uma condenação criminal perante seus colegas, familiares e amigos, como se uma decisão condenatória criasse uma “verdade” por ela contrariada a cada dia, a cada conversa. E, embora esperançosa de uma decisão judicial favorável, repetia para mim, sua advogada, que rezava todos os dias para que Deus a poupasse de assistir a uma sentença condenatória, mesmo que isso significasse a sua morte prematura. 
Coincidência ou não, a acusada – que gozava de boa saúde – faleceu poucos meses antes da sentença judicial ficar pronta, vítima de uma queda da escada em sua residência.
Não cabe aqui tecer comentários sobre as provas apuradas contra a acusada, tampouco se a sentença judicial lhe seria mesmo desfavorável e, assim, estaríamos diante de uma intervenção divina em atendimento ao pedido da acusada.
O lamentável episódio, vivenciado há algum tempo, ensejou muitas reflexões sobre os efeitos provocados naqueles que se sentam, justificadamente ou não, no banco dos réus.
Acredito que nem o juiz, nem o promotor de Justiça, tem ideia do estresse ao qual é submetido o acusado ao ver seu nome no rol de denunciados em uma ação penal. Já o advogado conhece o nervosismo,a ansiedade e o temor de quem senta a sua frente, esperando uma solução, uma palavra de apoio, uma esperança mínima que seja para dormir mais tranquilo à noite.
E, pensando bem, essa preocupação do acusado tem mesmo razão de existir. Por melhor que se apresentem as provas em favor da defesa, a incerteza de uma eventual pena é impeditiva de planos e sonhos futuros, e o “calvário processual” acompanha todos os passos do acusado, durante todos os dias da semana.
Mas não é apenas a espada do magistrado que paira sob a cabeça do réu: em caso de condenação, o julgamento social terá inegável importância na escala do sofrimento. Ora, a publicidade da acusação causa ao réu inegáveis constrangimentos, aumentados a cada comentário exposto na mídia, a cada “visita” do oficial de justiça a sua residência, a cada divulgação dos atos processuais nos sítios de busca na internet, a cada pedido para que alguém testemunhe em seu favor ou a cada comparecimento ao fórum. E não é só: os olhares de reprovação durante atos processuais, a frieza de tratamento nas ouvidas, as ameaças veladas da fase de inquérito, as palavras duras da acusação, absolutamente tudo se transforma em violência. É a violência processual, silenciosa, presente, fria e representativa de um mal futuro.
O desespero e ansiedade dos acusados integra tanto o cotidiano da atuação do advogado criminalista que se diz que todo advogado tem um pouco de psicólogo, de padre e de conselheiro. E é a mais pura verdade. Mas é verdade também que os anos de experiência vão deixando o profissional calejado desse sofrimento, com a frieza necessária para se mostrar impassível diante do lamento do réu, já tantas vezes ouvido e presenciado. Até que aparece um caso como o de Lourdinha, trazendo à tona toda a emotividade dos primeiros anos de profissão e empurrando o advogado a refletir sobre outra verdade: tem que haver vida além do processo criminal.


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