As bruxas do século 21

Márcia Mª G. Alcoforado de Moraes
Professora Associado - Departamento de Economia/PIMES/PPGEC. Universidade Federal de Pernambuco - UFPE.
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Publicado em: 15/10/2018 03:00 Atualizado em: 15/10/2018 09:14

Clarice Lispector foi uma das ilustres convidadas do I Congresso Mundial de Bruxaria ocorrido em Bogotá (1974). De acordo com seu biógrafo Benjamin Moser, em plena ditadura militar e após ter publicado o polêmico A Via Crucis do Corpo, sua notoriedade e reputação eram crescentes, não só no Brasil mas em toda a América Latina. O livro rendeu-lhe duras críticas por conter “toques pornográficos”. Partiu, em meio a um coro de indignações sobre a obra, tendo que negar, à volta, algumas narrativas fantasiosas. Uma delas a descrevia em passeios, na Colômbia, vestida de preto e cheia de amuletos. Sua literatura, na verdade, surpreendeu o Brasil desde a estréia. Perto do Coração Selvagem lançado aos 23 anos, rendeu-lhe o Prêmio Graça Aranha(1943) e causou furor na crítica brasileira, que alegava não lembrar-se de estreia mais sensacional. Seus contos e livros não descreviam ações, mas sensações. O que passava-se no interior dos personagens, em sua grande maioria mulheres, estava sempre em primeiro plano em relação ao mundo exterior. O tom era subjetivo e passional. Suas personagens buscavam liberdade e autonomia num mundo ainda predominantemente masculino. A literatura feminina de Clarice causava e segue causando estranhamento. Alguns procuravam explicá-la como estrangeirice. Ao fim da vida teve sua produção comparada à bruxaria. Até hoje permanece envolta em mistérios. As bruxas, queimadas por mais de 400 anos na Idade Média, são descritas como tendo sido parteiras e /ou mulheres que sabiam usar plantas e curar enfermidades. Reuniam-se frequentemente em grupos para trocar conhecimentos e conversar sobre problemas comuns. Gozavam de grande prestígio social e a algumas atribuíam-se poderes mágicos. Desde então, a união de mulheres é vista como algo a ser temido e redes delas são frequentemente associadas a riscos à ordem e à moral cristã. Ana Pompeu considera continuarem bem atuais as engrenagens do passado na tentativa de refrear o empoderamento feminino e os grupos de mulheres. Associar atos de independência à imoralidade e vincular religião e Estado propagam preconceitos e evitam debates que promovam reais avanços em pautas femininas. Para ela: “O feitiço mais efetivo a estas barreiras é nos reconhecermos bruxas feministas.”Na manifestação do último dia 29 de setembro, já considerada a maior passeata feminista da história do país, meninas muito jovens seguravam cartazes onde liam-se serem elas mulheres que sabiam voar. Dizendo-se netas das bruxas que foram queimadas, gritavam palavras de ordem além do #EleNão, repudiando o machismo, o fascismo e o ódio. A reação da candidatura rejeitada, colocou as assumidas bruxas numa fogueira simbólica em pleno século 21. Algumas igrejas evangélicas, cujos líderes apoiaram, à mesma época, a extrema direita, encarregaram-se de associar à marcha, não a uma luta por direitos, mas a um atentado à moral cristã. Não faltaram reações de grupos femininos pró-Bolsonaro classificando tal feminismo como antifeminino. Relata-se, durante a caça às bruxas, muitas denúncias de mulheres entre si. Foi um meio utilizado por algumas para safar-se de eventuais acusações, e ao mesmo tempo, serem aceitas pelo Sistema. A contraposição da feiúra e da sujeira das “hereges” às diferenciadas mulheres da “direita” foi acrescentada pelos inquisidores, completando o retorno às trevas. O Fórum Econômico Mundial publica, anualmente, diversos relatórios: um deles, direcionado à questão de gênero, mensura desigualdades entre homens e mulheres em 144 países. O último , de 2017, mostrou piora na situação brasileira. Caímos para a 90º posição, tendo já estado em 67º lugar em 2006. Figuramos hoje, entre os países da América Latina e Caribe, à frente apenas do Paraguai (96º) e Guatemala (110º). Nossa baixa representatividade política e a persistente diferença salarial são as causas do sofrível desempenho. Clarice Lispector, a grande bruxa da literatura brasileira, já achava “inteiramente mágico o fato de uma escura e seca semente conter em si uma planta verde brilhante”. O movimento #EleNão iniciou-se como uma reação a posturas misóginas, encheu-se de significados e ao incorporar a defesa da democracia e dos direitos humanos passou a ser um movimento humanitário. Longe de arderem em chamas, as bruxas do século 21 têm o poder de reduzir a cinzas o conservadorismo patriarcal e religioso, que ainda persiste em nossa sociedade. Afinal, já nos dizia Clarice: “Mágico é o fato de termos inventado Deus, e por milagre, Ele existir.”

* Professora Associado - Departamento de Economia/PIMES/PPGEC. Universidade Federal de Pernambuco - UFPE.


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