A neutralidade tem consequências

Maurício Rands
Advogado, PhD pela Universidade Oxford, ex-deputado federal

Publicado em: 12/10/2018 03:00 Atualizado em: 12/10/2018 20:22

Água Fria, Zona Norte do Recife, dia 5/10, 20h30. Converso com uma senhora que ganha a vida numa banca na calçada, em frente da qual o esgoto corre a céu aberto. A essa hora, ainda ralando. Informa que seu filho pegou doença de pele, que demorou a ser curada porque o atendimento da saúde é imoral. Assim explica por que vota em Bolsonaro. Dizer que essa senhora é fascista seria ignorância sobre os reais motivos do seu voto. As burocracias partidárias não entenderam o levante de julho de 2013 contra os péssimos serviços públicos. Continuam insensíveis à persistência de tanta miséria. Os guias eleitorais seguem no estelionato dos filmetes que parecem retratar a Escandinávia. Como se surpreender com o voto de protesto  em quem logrou encarnar o ‘antitudo isso que aí está’?

Bolsonaro surfa em três sentimentos muito fortes. O ódio ao sistema político que reproduz a pobreza e a desigualdade, e que retorna péssimos serviços públicos. O ódio à corrupção e ao PT. E, finalmente, o horror à violência que hoje campeia nas ruas. Ele surfa no fracasso da promessa democrática frustrada. Baseado no tripé moralista família-religião-forças armadas, as três instituições que ainda têm crédito aos olhos do povo desesperançado. Seu populismo de direita faz referência nostálgica à ditadura militar e critica os direitos humanos.

O problema é que a receita apresentada por Jair Bolsonaro não vai resolver nossos problemas. Na economia, não é o ultraliberalismo de Paulo Guedes, da Escola de Chicago, que vai reduzir a pobreza e a desigualdade. O estado e suas políticas compensatórias seguem sendo necessários numa das sociedades mais excludentes do planeta. O reacionarismo comportamental também não vai fazer a sociedade menos conflituosa e mais feliz. Ao contrário, o discurso do ódio contra nordestinos, gays, afrodescendentes, mulheres e pobres vai aprofundar os conflitos e a infelicidade. Na segurança, não é armando todos os cidadãos que vamos reduzir a violência. Isso iria agravar os crimes de proximidade. Temos que ter mais armas e equipamentos, sim. Mas nas mãos certas, as dos agentes do estado. Com mais inteligência, equipamentos e policiamento ostensivo. Lógico que não basta apenas atuar nas causas remotas. É preciso que as forças políticas contrárias ao populismo de direita de Bolsonaro reflitam sobre as falhas das soluções sobre a violência que até então têm proposto.

Para que o populismo Bolsonarista seja derrotado, algumas premissas. Primeiro, entender que a candidatura Haddad não é mais apenas de um partido. Depois, a burocracia do seu partido precisa entender que ela, muitas vezes, é bem menor (política e eticamente) do que a generosidade de seus militantes. Por isso, a direção do PT deve um pedido de desculpas. Uma autocrítica que não seja superficial, meramente eleitoreira. Precisa reconhecer que a cúpula partidária corrompeu-se, com muitos de seus principais líderes desviando dinheiro para o patrimônio pessoal. E que poderia ter feito as reformas estruturais. Ah, precisa reconhecer também que não se muda um país mentindo nas campanhas. E aí, que tal começar por reconhecer o desastre que foi o Governo Dilma? Que a recessão em que ela jogou o país e que os 14 milhões de desempregados foram sua responsabilidade? Alguém acredita que o único culpado foi  o Governo Temer?

Embora não alimente ilusões sobre essa capacidade de autocrítica, vou votar em Haddad. Simplesmente porque tenho consciência de que a democracia  é uma conquista muito cara do nosso povo. Nas ruas, a minha geração lutou pelas eleições diretas e pela Constituição Cidadã. Nela inscrevemos os valores democráticos do estado de bem-estar social. Com respeito à pluralidade política, à alternância de poderes, à diversidade. Com prevalência das instituições republicanas. Com a busca da erradicação da pobreza e da desigualdade. Com o combate às discriminações aos afrodescendentes, indígenas, pessoas com deficiência, pessoas LGBTI, idosos, crianças e mulheres em situação de vulnerabilidade. O ideário expresso por Bolsonaro está longe deste roteiro. Em verdade, tenta reverter alguns dos avanços nessa direção.

Empresto o meu apoio crítico. Vou votar pelos princípios e valores que acima mencionei. Para que nosso país não enverede por retrocessos democráticos e comportamentais. Para que não se perpetue o ambiente de ódio e intolerância que hoje divide a nação. Para que as instituições não sejam ainda mais tensionadas nos próximos anos. Para que as forças democráticas prevaleçam, ainda que muitos sejamos críticos às cúpulas do PT. Espero que essas forças celebrem um compromisso por um projeto de reconstrução nacional. Fundado nos valores da democracia, da tolerância, da ética republicana no trato dos recursos públicos, no respeito ao funcionamento das instituições, e na busca por uma sociedade com menos desigualdade e pobreza.

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