Vida e arte: o jogo da imitação

Bartyra Soares
Membro da Academia Pernambucana de Letras

Publicado em: 21/09/2018 03:00 Atualizado em: 21/09/2018 09:21

A vida imita a arte ou a arte é cópia da vida? Essa é uma questão geradora de argumentos e contra-argumentos entre escritores e leitores, artistas e plateias, principalmente pelos estudiosos dos eternos confrontos da existência humana.

Quem se dispuser a ler Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar, obra ficcional, pode confirmar que a arte não imita a vida ao encontrar um crime entre membros da mesma família? E quem ler A Guerra Não Tem Rosto de Mulher, de Svetlana Aleksiévitch sobre a II Guerra Mundial, pode afirmar que a vida não imita a arte ao se deparar com filmes de guerra, muitos deles com base no surrealismo e na ficção científica, quando ainda não havia explodido a II Guerra?

Nos romances históricos, onde começa a vida, onde começa a arte? Os escritos pela pernambucana Luzilá Gonçalves Ferreira possuem o cunho da verdade, alicerçados em pesquisas, estudos, consultas a fim de trazer à contemporaneidade o que sucumbiria no esquecimento. Mas, a linguagem poética, a riqueza de imagens, as elaborações das metáforas da autora, fundem-se num só jogo na abordagem da vida e da arte.

Ainda bem que assim o é. Sua narrativa Simoa e Domingos Jorge Velho, o Avô Desalmado, sua mais recente criação literária, narra as cenas com fidelidade ao discorrer sobre a história de Simoa, uma índia esclarecida, determinada, fundadora de Garanhuns.

É, porém, exatamente essa fidelidade aos fatos que leva a autora a não omitir as perversidades praticadas por Domingos Jorge Velho, o desalmado avô de Simoa, matador de indígenas e negros. Ninguém resistiria sem emocionar-se diante de tantas cenas de horror, de antropofagia, de barbarismo, se a escritora com sua argúcia não houvesse aberto espaço para os sonhos, as descrições das paisagens, as crendices, o que só embeleza os relatos. Eis uma frase acolhida pelo coração da índia: “Aprendera com a mãe: na Lua moravam as almas dos mortos, repousando para nunca mais voltar à Terra”.

Isso deixa claro que se a narrativa não amenizasse alguns trechos chocantes, apesar da generosidade da indigena, ninguém a leria de forma serena, ante tantas páginas marcadas a fogo e ferro. Doía na alma da índia ver próximo à sua casa erguido um polé, onde ladrões e assassinos eram torturados e mortos. Seu desejo era ver construída no local uma capelinha. Sua determinação transformou em realidade o seu sonho de paz. À frente dos trabalhadores logo viu concluída a igreja de Santo Antônio de Garanhuns. Luzilá descreve esse fato com a brevíssima, mas uma das mais belas metáforas do livro: ali nasceu “da terra uma flor de pedra e cal”.

Enfim, conduzido pelas mãos da narradora, o leitor atravessa o túnel do tempo, entrando em contato com um passado de lutas, conquistas, heroísmo e beleza. Um passado a lhe mostrar que na fundação de Garanhuns, se entrelaçaram vida e arte, verdades e fantasias.

Hoje, graças a Simoa, pairando sobre as sete colinas onde se ergue a cidade, sobre flores, rastros de sóis e luas, a mais do que secular Garanhuns emerge a cada dia da neblina para escrever um novo capítulo de sua história. Isso tão bem sabe Luzilá, uma filha daquelas paragens.

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