Quem lê lá?

Marcos Pena Júnior
Economista

Publicado em: 03/09/2018 03:00 Atualizado em: 03/09/2018 08:48

Há uma área de estudo em economia denominada racionalidade limitada. Seus estudiosos argumentam e demonstram que os seres humanos, por mais bem formados que sejam e mais conhecimento que detenham, são limitados em seu processo analítico. Isso se dá por termos naturais restrições cognitivas. A quantidade de informações e de processos de análise para podermos tomar uma decisão racional, destacadamente em situações complexas e que envolvem risco, é imensa. O prêmio Nobel de economia de 1978, Herbert A. Simon, construiu argumentos muito sólidos nesse sentido. Já Daniel Kahneman, agraciado com o prêmio em 2002, recebeu essa distinção por ter desenvolvido estudos integrando psicologia e ciências econômicas a respeito da questão. Em "Rápido e devagar" (Objetiva, 2012) ele demonstra resultados de décadas de pesquisa e como questões relacionadas às rápidas associações que o cérebro faz, sua tendência à zona de conforto e sua enorme capacidade de tirar conclusões precipitadas leva até grandes especialistas a cometerem erros mesmo em suas áreas de atuação.

Podemos encaixar nesse tipo de situação algumas defesas expostas publicamente acerca da polêmica sobre a quantidade de livros lidos pelo ex-presidente Lula em seu cárcere. Fato que teve forte repercussão semanas atrás e foi mote de comentários recentemente, mais uma vez. A reação dos críticos do ex-presidente de que é mentira que leu 21 livros em apenas 57 dias, pois isso não seria factível, definitivamente é uma conclusão precipitada, fruto de uma associação rápida. Um leitor médio é capaz de ler uma página com algo em torno de 4.000 caracteres em aproximadamente 6 minutos. São 10 páginas por hora, 80 em oito horas de leitura. É razoável imaginar que um indivíduo encarcerado consiga ler um livro de 150 páginas em dois dias. O benefício de redução de 3 dias a cada leitura concluída e resenhada certamente estimula presos a o fazerem. A famosa escritora Agatha Christie lia 200 livros em um ano, em 57 dias ela teria lido 31! Para uma pessoa sem mais nada para fazer, alcançar essa marca imputada ao encarcerado não é lá nenhum feito extraordinário.

A falácia extremamente disseminada de que Lula não lê parece ter sido gerada de maneira proposital. Uma arma para lhe aproximar do povão. Mais uma forma de alimentar o ideário sobre o trabalhador braçal e de pouco estudo que venceu na vida. Essa história, que ele próprio, não a toa, fez questão de alimentar, não se difundiu tanto por mero acaso. Pode até ter sido uma breve escorregada de comunicação em tempos idos, mas se tornou puro cálculo político. Numa nação em que na média cada pessoa lê 5 horas por semana e menos de 3 livros completos por ano, é fácil perceber que quem assume que não lê gerará no outro um sentimento de pertencimento ao mesmo grupo (efeito group in, na psicologia). É bom sempre lembrarmos, "Lula lá, é a gente junto".

Pessoa muito próxima, profissional da aviação civil, ex-militar e que tem sérias restrições às defesas políticas da esquerda, ao PT e ao próprio Lula, atuou como piloto particular do proprietário de uma companhia aérea anos atrás. Seu empregador apoiou o ex-presidente em certa campanha presidencial e ele, como piloto, realizou inúmeros voos particulares, transportando o então candidato presidencial do PT. Não cansa de relatar que a maior figura petista estava sempre com um livro à mão e lia em todos os voos.

Os opositores de Lula acreditam o estar ridicularizando ao fazer troça acerca da sua suposta aversão à leitura. Mas estão, com isso, alimentando uma certa visão romântica que lhe confere dividendos político-eleitorais num país em que, de forma geral, se enxerga que a leitura é um hábito elitista. Podem ser verdadeiros, um tanto distorcidos ou completamente falsos os números de leitura do ex-presidente, fato é que uma coisa é ler "Vidas muito boas" de J. K. Rowling, outra é fazer o mesmo com "Em busca do tempo perdido" de Marcel Proust. Como profissional com experiência no ensino superior, sei bem como alunos podem realizar contrabandos na produção de textos. Fosse identificado algo similar com as resenhas elaboradas pelo ex-presidente - advogados levando a ele resenhas já prontas? -, boa parte da população não ficaria necessariamente surpresa. Contudo, que uma pessoa com todas as horas do dia disponíveis para ler consiga concluir 21 livros em 57 dias é algo totalmente possível e lógico.

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