A iniquidade da lei - ou daquilo que insistimos em chamar de lei

Tiago Carneiro Lima
Advogado, sócio de Lima & Falcão Advogados

Publicado em: 30/08/2018 03:00 Atualizado em: 30/08/2018 08:51

Imagine que você é juiz do Supremo Tribunal Federal. E sabe que nosso Legislativo é conservador, com grande número de parlamentares acusados de corrupção.

Nessa perspectiva, imagine que o Legislativo aprovasse leis onde os LGBT seriam submetidos a tratamento hormonal, sob pena de prisão. Crimes hediondos, pena de morte. Mulheres, funções subalternas. Álcool e drogas, crimes inafiançáveis. Roubo, perda de uma mão. Reincidência, outra mão. De volta ao passado...

Não pense que construo hipótese absurda. Visitei a Turquia, anos atrás. Fiquei deslumbrado com o antigo e novo se espelhando. Mustafa Atatürk inserira o país no mundo democrático ocidental. Agora, Recep Erdogan trilha o caminho inverso. A Turquia tentou ingressar na comunidade europeia, mas vem sendo barrada por razões políticas, econômicas, humanitárias. A velha ordem se impondo à nova.

No Brasil, campo dos privilégios, estamos saindo da belíssima evolução do direito romano para cairmos no império da lei escrita, desprovida da ética e do senso moral: “Eu tenho direito! Está na lei. Que se fodam, os demais.”  

Franz Wieacker (História do Direito Privado) mostra-nos como avançamos no campo privado. Na área do direito público, impossível citar o tanto que se escreveu sobre a evolução das normas jurídicas e de como o nosso atual plexo de direitos foi construído. Autoritárias, sangrentas, inumanas, potestativas, as leis foram ajustadas. Os lordes ingleses tinham “o direito de desvirginar” donzelas escocesas. Estava na lei...

Os pretores romanos introduziram a “justiça nas leis”. Seguindo essa corrente, os legisladores do mundo afora se viram premidos a escrever leis justas, principalmente pelo advento da filosofia grega, dos ensinamentos do cristianismo e da filosofia de vida dos orientais. Legislariam sobre fatos sociais reais, e não mais contra eles.

“Non omne quod licet honestum est”. O li´cito juri´dico subordinado ao li´cito moral. A norma juri´dica com te´cnica, e na~o a te´cnica juri´dica sem a e´tica.

Você é ministro do Supremo Tribunal Federal. E o Legislativo nos aparece com as hipotéticas leis que citei. O que você faria?

Ministro do Supremo, embate sobre o aumento dos 16%, placar de 7 x 4. O Brasil, hoje, tem 27 milhões de desempregados. Como você votaria? Renunciaria a mais esse privilégio, ou trocaria de automóvel, planejaria outra viagem à Europa – para falar, aos seus pares, “de como é boa a comida e como é bom andar pelas ruas com aquele sentimento de segurança”?

Tendo por base Aristóteles, Cícero, Kant, Bobbio, o que você faria, enquanto ministro? Votaria contra mais esse escárnio e, voto vencido, submeter-se-ia às novas leis? Você se submeteria a um califado, à xenofobia, à homofobia? Ou faria os que os poetas, pintores, músicos, ativistas, heróis e mártires fizeram ao longo da história? Seria o oficial nazista, “cumpridor de ordens”, ou se portaria como Thoreau, Bakunin, Gandhi, Martin Luther King, Tiradentes, Frei Caneca, e como tantos outros, que fizeram a parte boa da história, opondo-se às leis injustas, resistindo às “leis iníquas”?

Dizer que se tem direito e salário defasado, para alguns privilegiados do setor público, é retroceder aos tempos do direito escrito, dissociado do fato social, da ética, da moral e dos bons costumes. Lembremo-nos de Cícero (não o porquinho do desenho de Pernalonga): “Non omnis quod licet honestum est.” Em bom Português: “Nem tudo o que é lícito, é honesto.”

Ministros Celso, Carmen Lúcia, Rosa Weber e Fachin: por que não renunciam, via judicial, a mais esse escárnio? É direito disponível! O sentido de unidade, no atual STF, não vem funcionando. Ou teria Mahatma Gandhi cometido um erro, quando, à beira-mar (sempre acontecem coisas estranhas à beira-mar...), pegou uma porção de sal?

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