Não deixem a Aurora morrer

Luiz Ernesto Mellet
Gestor governamental da Secretaria de Planejamento de Pernambuco

Publicado em: 11/08/2018 03:00 Atualizado em: 15/08/2018 10:42

Sobrepostas às intempéries do tempo e à ingerência do abandono, os recifenses mais sensíveis ainda conseguem enxergar a bela fisionomia urbana da cidade. Porque não se acha facilmente um território no qual garras de terras rasgaram as águas para desenhar uma planície aluvial protegida por uma muralha natural de arenito. O colonizador logo percebeu a vocação portuária que havia nessa península tropical. Então vieram as docas, ruas, fortes e uma ponte de madeira sustentada por dois arcos de pedra que o arquiteto judeu Baltazar de Affonseca ergueu. Em 1709, surgiu a Vila de Santo Antônio do Recife.

De modo que sobram motivos para jactar-se sobre as qualidades desta capital situada no Nordeste brasileiro. Da mesma forma pretextos também não faltam para reclamar o estado de ruína em que se encontram vários prédios históricos na parte velha da cidade. O que é doloroso, uma vez que ali abriga um conjunto arquitetônico de enorme valor artístico, repleto de logradouros que projetam sobre o horizonte verde dos mangues a Torre Malakoff e os campanários de igrejas seculares.

Já faz algum tempo que a força depredadora da decadência estendeu sua mancha para fora dos arrabaldes de Santo Antônio e São José. Cruzou o Capibaribe para tomar de assalto as vias e a principal avenida do bairro da Boa Vista. Agora ameaça aquela que talvez seja a mais recifense das ruas: a Rua da Aurora. Tudo ali é de um silencioso retrocesso cheirando a urina. Os monumentos estão enferrujados e a escrita nas lápides dos heróis pernambucanos está apagada. Se o passado já há tempo dali se foi, o futuro também parece não querer mais saber dessa rua. O que não deixa de ser uma contradição, já que representa umas das imagens mais identitárias do Recife.

O desleixo com o patrimônio histórico e natural talvez seja o sintoma mais nefasto de uma demência incurável que costuma acometer os gestores públicos. Pouca atenção se reserva à preservação da memória urbana. E no Recife não é diferente. Basta andar pelo centro da cidade para ver a situação em que se encontra: as praças estão tomadas pelo capim, as fontes esvaziadas e os monumentos pichados.

De sorte que a Aurora não foi excluída desse infortúnio. Imagino o que acharia Francisco Antônio de Oliveira, o Barão do Beberibe, caso visse o lugar em que construiu altivas residências da cidade sendo ocupado agora por uma população esquecida pelo poder público que, sem ter onde morar, atravessa o dia vegetando pelos jardins e se recolhe à noite sob as marquises abandonadas.

Junto ao entulho de pneus e sacolas plásticas que se amontoam rente ao gradil da mureta de proteção, quem por ali circula pode observar a triste cena de homens, mulheres e crianças com o nariz enfiado numa garrafinha de cola a qualquer hora do dia. Brigas viraram rotina. Uma mulher morreu a pedradas enquanto dormia num quiosque. De forma que a sujeira e a violência campeiam pela Rua da Aurora, afastando os moradores e turistas dessa alameda cantada em verso e tão querida por todos recifenses.

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