Um nordeste reinventado Luzilá Gonçalves Ferreira Doutora em Letras pela Universidade de Paris VII e membro da Academia Pernambucana de Letras

Luzilá Gonçalves Ferreira
Doutora em Letras pela Universidade de Paris VII e membro da Academia Pernambucana de Letras

Publicado em: 31/07/2018 03:00 Atualizado em: 31/07/2018 08:59

“... fazer certas coisas ao contrário para ver se assim daremos um pouco de jeito nas coisas.” A proposição poderia parecer surpreendente a nós outros que desde os primeiros anos de escola – ou mesmo depois – não tivéssemos aprendido que todo empreendimento tem começo, meio e fim, nessa ordem. Acontece que a sugestão provém de um grande artista a um outro grande artista, os dois já tendo dado provas de que a criação independe de normas, da lógica a que a vida nos habituou. A sugestão veio  de Hermilo Borba Filho a José Claudio, num desafio. Normalmente quando um escritor deseja um livro ilustrado, apresenta ao mestre do desenho um texto construído a partir de palavras. Este dá outro modo de vida ao texto literário sob forma de imagens, rabiscos, desenhos, traços. Todos sabemos como as ilustrações de Daumier, de Gustave Doré, para só citar esses dois, ampliaram nossa visão da Divina Comédia, dos personagens de Balzac. Aqui, entretanto, o caminho foi inverso. Durante algum tempo e semanalmente, Zé Claudio entregava um desenho a Hermilo. Que, na semana seguinte transmitia ao pintor o resultado da assimilação de seus traços, linhas, rabiscos. O conjunto se transformava numa só coisa, como escreve o ilustrador, “os dois passaram a ter uma vida una” Assim, o leitor descobre na descrição da enchente “quando os cavalos na estribaria se levantaram e se morderam nos beiços um do outro, aos coices as tábuas voaram, o cão ergueu-se de orelhas em pé(...) a chuva caindo, a água nos gorgolejos de corrente...” os traços de um cachorro ao lado de um bode com cauda de cavalo no qual parece terem nascido chifres, o conjunto de traços simulando a força imprevisível da cheia. Ou então o desenho de um animal de três patas, carregando um chapéu, que, em meio à festa, “nos verdadeiros tempos de natais adentrou a roda, a roda se abriu”. E era uma cutia que “cheirou em volta, o chapéu nos dentes, depositou-o de copa pra cima, ciscou em volta, olhou os da roda calados na surpresa e, voltou e sumiu na mata.” Ou o vulto de um personagem meio homem meio mulher, no que poderia ser um canavial, uma mancha de tinta ao pé do desenho, no texto sobre Mateus: “Ele o Besuntado de fama corrida, ela nos quinze dando a volta por trás de casa grande, uma volta grande de fuga, nos encontros do aceiro, onde terminava o canavial e começava a mata, tudo principiado por acaso, encontro de nada acertado, mas porém a partir do então no vício de todos os dias, o negro com e menina branca (...)”. O conjunto desses textos e desenhos, às vezes intrigantes, às vezes surrealistas, foi lançado semana passada no Museu do Estado, sob forma de livro publicado pela Cepe, quando também foram entregues ao público O palco e o mundo de Hermilo Borba Filho, extraordinária, séria e comovida pesquisa de Luís Reis sobre o Teatro Popular do Nordeste, e o romance Sol das Almas de Hermilo, “um dos momentos mais altos de nossa literatura,” como escreve Raimundo Carrero apresentando a obra. Um retrato crítico mas afetuoso do Nordeste brasileiro. 

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